sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Chacina em Gaza parte 3

A prontidão do Hizbóllah, para intervir militarmente
Alguns analistas sugeriram que haveria divisões internas no Hizbóllah, relativas às circunstâncias sob as quais o Hizbóllah daria ajuda militar ao Hamás. Essas análises não parecem plausíveis. Como já se disse aqui, não cabe supor que o Hizbóllah tenha sido surpreendido pelo ataque israelense e é altamente implausível que os estrategistas do Hizbóllah e as lideranças políticas tenham sido apanhadas no contrapé e, de repente, tenham sido colhidas por divisões internas que as pressionassem a tomar qualquer tipo de iniciativa não planejada. A concepção estratégica fundamental da ideologia do Hizbóllah, de defender o Hamás e a população palestinense contra agressões israelenses é, necessariamente, questão de fundo, sobre a qual jamais houve qualquer divisão e é perfeitamente consensual dentro do partido.
Além disso, as lideranças políticas do partido não se comprometeram publicamente com qualquer política de contenção, nem é provável que o tivessem feito nos bastidores, como tentaram argumentar alguns funcionários do Líbano no campo adversário de 14 de março. Quando Saad Hariri, líder da maioria parlamentar no parlamento libanês, anunciou, no início de janeiro, que Saeed Jalili, chefe do Conselho de Segurança Nacional do Iran, lhe garantira que o Hizbóllah não reagiria ao ataque de Israel a Gaza, Nasrállah imediatamente o ridicularizou, por estar oferecendo "garantias grátis" a Israel. De fato, eu mesmo, que aqui escrevo, em contato com fonte confiável na embaixada do Iran no Líbano, soube que Jalili jamais deu qualquer tipo de "garantia" a Hariri.
A razão, então, para essa ambiguidade construtiva do Hizbóllah, e venha ou não a intervir militarmente na guerra de Gaza, parece bem clara: embora até aqui o Hizbóllah tenha-se mantido à margem do conflito direto, é altamente improvável que continue assim no caso de haver risco real de o Hamás entrar em colapso.
Se se sabe que a causa dos palestinenses é central na estratégia do Hizbóllah, considerada, por sua vez, como crucialmente decisiva na resistência contra o projeto EUA-Israel na Região, o Hizbóllah em nenhum caso permitirá que o Hamás seja esmagado, seja militarmente seja politicamente – o que seria resultado inevitável, no caso de o Hamás ser encurralado para uma posição em que seja obrigado a assinar algum acordo humilhante de cessar-fogo, que enfraqueceria muito e eventualmente destruiria o movimento. Nesse contexto é que se devem interpretar os discursos mais recentes do Hizbóllah, de que "jamais abandonará a defesa dos palestinenses".
Outra indicação de que o Hizbóllah está pronto para oferecer apoio militar ao Hamás apareceu também na fala de Nasrállah do dia 29/12, dia santificado para os Muçulmanos, o Dia da Ashura ("Décimo Dia"), fala que ainda não foi suficientemente analisada no ocidente, dentre outros motivos porque não foi sequer divulgada no ocidente: "Espero que todos os aqui reunidos hoje (...) estejam sempre prontos a responder a qualquer chamado, convocação, decisão." Embora se possa ler aí que os seguidores do Hizbóllah's estivessem sendo convocados para defender o próprio direito de defender-se em caso de agressão de Israel ao Líbano, também se pode argumentar que o Hizbóllah não precisa convocar seus partidários, que já tantas vezes demonstraram prontidão e rapidez de resposta, em casos em que se tratou de defender o próprio direito de defesa. Além do mais, o Hizbóllah não tem qualquer tradição de formular estratégias e posições de autodefesa; a autodefesa é entendida como direito não-negociável nem discutível e, muito mais importante, como dever do Hizbóllah.
Cenários de intervenção
Embora qualquer ação armada do Hizbullah atraia sobre o movimento a ira mais cega de Israel, não se pode dizer que haja qualquer dificuldade radical em o Hizbóllah atrair para essa estratégia o apoio popular dos xiitas; bastaria, para tanto, que, além de apresentar alguma ação armada contra Israel como estrategicamente interessante (porque abriria outra frente de combate que Israel teria de enfrentar), o Hizbóllah a apresente como movimento de legítima autodefesa. Israel tem fornecidos inúmeros pretextos ao Hizbóllah, na forma de provocações, das quais o Hizbóllah poder-se-á servir, para iniciar guerra, também ele, contra o Estado sionista. Além de Israel ainda continuar ocupando as fazendas de Shebaa e Ghajar, das quais o governo libanês, usando só as vias diplomáticas, ainda não conseguiu retirar as tropas israelenses de ocupação, Israel continua, quase rotineiramente, a sequestrar civis libaneses no setor libanês da Linha Azul. O mais recente desses sequestros aconteceu em dezembro de 2008.
Ainda mais frequentemente, aviões israelenses invadem o espaço aéreo do Líbano, em atos diários e repetidos de violação que contrariam o que determina a Resolução n. 1701, da ONU.
Em julho de 2008, o Hizbóllah protestou abertamente contra essas violações, declaradas "provocativas, inaceitáveis, proibidas e condenáveis", e exigindo que o governo do Líbano e os corpos responsáveis da ONU tomassem as medidas necessárias para pôr fim àquela prática ilegal. Em 31/7/2008, o jornal libanês Al-Akhbar, considerado simpático ao movimento, noticiou que o Hizbóllah planejava tomar "medidas práticas" em resposta àquelas violações. Pela mesma época, vários jornais, em todo o mundo árabe, noticiaram a instalação de bases de lançamento de mísseis anti-aéreos nas montanhas do Líbano, para o objetivo explícito de impedir qualquer violação de seu espaço aéreo por aviões de Israel. Verdadeiras os falsas essas notícias, a verdade é que o Hizbóllah nem precisaria derrubar jatos para protestar contra os atos ilegais de Israel; bastaria pôr-se a disparar foguetes ou mísseis anti-aéreos (ou não) que "acidentalmente" cairiam nas colônias de ocupação do norte de Israel, como já aconteceu no passado.
Alguma resposta ao atentado no qual Israel assassinou Mughniyeh também seria fagulha suficiente para que o Hizbóllah se declarasse em guerra contra Israel. De fato, não pode haver dúvida de que o Hizbóllah responderá àquele atentado, mais dia menos dia, considerando-se o significado político e militar que teve para todo o movimento e lembrando-se que, na fala do dia 14/2/2008, Nasrállah falou sobre "uma guerra aberta" contra Israel. Além disso, uma semana depois, na fala de 22/2/2008, jurou vingança: "Oh, Hajj Imad, juro em nome de Deus que seu sangue não correu em vão." É muito provável que o Hizbóllah tenha reservado o direito de responder àquele atentado em momento em que a resposta sirva a objetivo estratégico e político mais amplo do que reação de 'olho por olho'. Que melhor objetivo político e estratégico poderiam supor que haja, do que quando os palestinenses enfrentam a carnificina selvagem a que o mundo assiste hoje e para salvar o Hamás de algum colapso que esteja iminente?
Em qualquer dos cenários possíveis, o Hizbóllah sempre terá de explicar o timing de qualquer medida defensiva que venha a adotar. Qualquer ataque sempre estará plenamente justificado como "preemptive attack", argumento cuja legitimidade o governo Bush encarregou-se de construir e ensinar ao mundo, no caso de o Hizbóllah definir-se (como os EUA definiram-se) como "os próximos" da linha de fogo de um exército de ataque. No caso de Israel, dificilmente alguém convenceria alguém de que, tendo destruído política e militarmente o Hamás, o Hizbóllah não seria "o próximo" na linha de fogo do exército de Israel.
De fato, Nasrállah já alertou duas vezes (nas falas de 28/12 e de 7/1) sobre o risco de que Israel ataque novamente o Líbano a qualquer momento. Nas duas falas, disse que o Hizbóllah estaria "mais do que preparado" para reagir.
Fato é que as ameaças de Israel ao Líbano não começaram com a guerra de Gaza; já há mais de um ano, não há discurso oficial do governo de Israel que não inclua ameaças ao Líbano.
O Hizbóllah, como exército em prontidão
O Hizbóllah começou a responder àquelas ameaças não só com contra-ameaças mas, também, com um novo tipo de discurso em que dá destaque ao objetivo de erradicar Israel da Região, se Israel insistir em definir-se como Estado sionistas. Nesse novo discurso, há clara referência a "destruir o exército israelense". A associação direta entre a sobrevivência de Israel como Estado e a capacidade de contenção do exército israelense não é nova, nos discursos políticos do Hizbóllah, mas, como Nasrállah explicou detalhadamente na fala de 22/2/2008, a novidade está em atacar diretamente o exército e sua "capacidade remanescente de contenção", como meio para mudar radicalmente a posição estratégica de Israel na Região.
No primeiro aniversário da guerra de julho, dia 14/8/2007, Nasrállah surpreendeu simultaneamente, tanto seus apoiadores quanto Israel, ao "prometer" uma "grande surpresa" em qualquer eventual próximo confronto militar com Israel, que "poderá mudar o rumo da guerra e todo o destino da Região" e que poderia levar o Hizbóllah a "uma vitória histórica e decisiva". O Hizbóllah não apenas conseguiria destruir toda a "capacidade remanescente de contenção" do exército israelense como, além disso, seria vitória rápida em guerra rápida: "Qualquer nova guerra será fácil e a vitória virá rápida" – disse Nasrállah, dia 24/8/2008.
Ao mesmo tempo em que vários analistas conjecturaram que as ameaças de Nasrállah sugeririam que o Hizbóllah teria comprado armas avançadas (mísseis anti-aéreos, por exemplo), nada impede que se conjecture (idéia que não invalida a conjectura acima) que o Hizbóllah tenha desenvolvido outros métodos e estratégias que impliquem número muito maior de combatentes do que antes. Dia 14/2/2008, Nasrállah disse que "Em qualquer guerra futura não haverá apenas um Imad Mughniyeh à espera de Israel, nem haverá apenas algum poucos milhares de combatentes. O Imad Mughniyeh deixou-nos a herança de dezenas de milhares de combatentes-mártires treinados, equipados e prontos." Dez dias depois, dia 24/8/2008, Nasrállah disse que esses combatentes lutariam "por método de luta sem precedentes", o qual, disse, "Israel jamais viu desde que aqui se implantou".
Independente de o quanto o Hizbóllah esteja preparado ou pronto para a guerra, e de qual seja seu real potencial para destruir a capacidade de contenção do exército israelense, fato indiscutível é que, para o movimento e para seus apoiadores e aliados, o objetivo de destruir o regime sionista em Israel deixou de estar confinado no plano exclusivamente ideológico e passou a incluir o plano muito objetivo dos interesses e movimentos estratégicos. A segurança de todos os regimes exige que a perpétua ameaça que Israel representa para todos, na Região, seja neutralizada de uma vez por todas.
Embora essa lógica possa parecer retrocesso aos anos 50 e 60, o novo pensamento do Hizbóllah é em tudo muito semelhante à noção de "troca de regime" e à proposta conhecida como "Solução de Um Estado", que integra as propostas que os EUA têm elaborado e que, na Região, já deslocaram e substituíram as idéias de "atirar os judeus (ou os árabes, conforme o lado) no mar" – presentes, no passado, tanto no fanatismo sionista, quanto no fanatismo anti-sionista quanto, também, no fanatismo árabe e no fanatismo anti-árabe.
Se a guerra de Gaza serviu para alguma coisa, ela serviu para levar essa lógica até a consciência política do mundo árabe e muçulmano. E, quanto a isso, o Hamás e o Hizbóllah estão vários passos à frente do exército de Israel e seus comandantes políticos que, no massacre de Gaza, já deram provas suficientes de que são ou completamente incompetentes ou completamente amorais ou completamente loucos.
fonte: Carta o Berro
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