quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Delirio

O direito ao delírio



Eduardo Galeano

Tradução: Celeste Marcondes



Já está nascendo o novo milênio. Não dá para levar muito a sério este assunto: afinal de contas o ano de 2001 dos cristãos é o ano 1379 dos muçulmanos, o 5114 dos maias e o 5762 dos judeus. O novo milênio nasce em primeiro de janeiro por obra e graça de um capricho dos senadores do Império Romano que um belo dia decidiu romper a tradição que mandava celebrar o Ano Novo no começo da primavera. E a contagem dos anos da era cristã é outro capricho: um belo dia o Papa decidiu ...

Milênio vai, milênio vem, a ocasião é propicia para os oradores de inflamada verve perorar sobre o destino da humanidade e para os porta-vozes da ira de Deus anunciem o fim do mundo e a destruição geral, enquanto o tempo continua de boca calada, sua caminhada ao longo da eternidade e do mistério.

Verdade seja dita, não há quem resista: em uma data assim, por mais arbitrária que seja qualquer um sente a tentação de se perguntar como será o tempo que virá. E vai saber como será... Temos uma única certeza: no século 21, se ainda estivermos aqui, todos nós seremos gente do século passado e, pior ainda, seremos gente do passado milênio.

Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que será, temos sim, pelo menos, o direito de imaginar o que queremos que seja. Em 1948 e em 1976 a ONU proclamou extensas listas de direitos humanos; porém, a imensa maioria da humanidade não tem nada mais que o direito de ver, ouvir e se calar.

Que tal se começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal poder delirar, mesmo que seja um ratito no más?

Vamos cravar nosso olhar mais além da infâmia, para antever outro mundo possível: o ar está limpo de todo o veneno dos medos humanos e das humanas paixões; nas ruas, os automóveis serão destruídos pelos cães; o povo não será manejado pelo automóvel nem programado pelo computador, nem será comprado pelo supermercado, nem será olhado pela televisão; o aparelho da TV deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupas; o povo trabalhará para viver em vez de viver para trabalhar; será incluído nos códigos penais o delito da estupidez, que cometem quem vive para ter ou para ganhar, em vez de viver para viver simplesmente, como canta o pássaro sem sabe que canta e como brinca a criança sem saber que brinca; em nenhum país serão presos os jovens que se negam a servir o exército, se não querem fazê-lo; os economistas não chamarão nível de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas; cozinheiros não acreditarão que as langostas gostam de ser fervidas ainda vivas; os historiadores não acreditarão que os países ficam encantados quando são invadidos; os políticos não acreditarão que os pobres ficam encantados ao comer promessas; a solenidade deixará de ser tida como uma virtude e ninguém levará a sério a quem não seja capaz de não se levar a sério; a morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e nem por falecimento ou por fortuna o canalha será convertido em virtuoso cavalheiro; ninguém será considerado herói ou idiota por fazer aquilo que acredita justo em lugar de fazer o que mais lhe convém; o mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas sim contra a pobreza e a indústria militar não terá outra remédio do que declarar falência; a comida não será uma mercadoria nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos; ninguém morrerá de fome porque ninguém morrerá de indigestão; as crianças das ruas não serão tratadas como lixo porque não haverá crianças de rua; as crianças ricas não serão tratadas como se fosse dinheiro porque não haverá crianças ricas; a educação não será um privilégio de quem pode pagá-la; a policia não será a maldição de quem não pode comprá-la; a justiça e a liberdade irmãs siamesas condenadas a viver separadas, voltarão a viver juntas, bem juntinhas, ombro a ombro; uma mulher negra será presidente do Brasil e outra mulher negra será presidente dos Estados Unidos, uma mulher índia governará a Guatemala e outra o Peru; na Argentina, as loucas da Praça de Maio serão exemplos de saúde mental porque elas se negaram a esquecer os tempos de amnésia obrigatória; a Santa Madre Igreja irá corrigir as erratas das Tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará que se festeje o corpo; a Igreja também ditará outro mandamento que Deus esqueceu: “Amarás a natureza, da qual fazes parte”; serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma; os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados porque eles são os que se desesperarão de tanto esperar e os que se perderão de tanto procurar; seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que têm vontade de justiça e vontade de beleza, tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido sem que se considerar nem um pouquinho as fronteiras do mapa ou do tempo; a perfeição continuará sendo o chato privilégio dos Deuses; porém, nesse mundo desajeitado e fudido, cada noite será vivida como se fora a última.






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