quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Pecados do Haiti

Não sei se já não postaram aqui!!!

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Os pecados do Haiti - Por Eduardo Galeano


*os pecados do Haiti*

Publicado em 15 de Janeiro de 2010 por Eduardo Galeano

(tradução livre de Antonio Folquito Verona)

A democracia haitiana nasceu há muito pouco. No seu breve tempo
de vida, esta criatura faminta e enferma não recebeu nada, além de
bofetadas. Estava ainda recém nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi
assassinada pela quartelada do general Raul Cedras. Três anos mais tarde,
ressuscitou. Depois de terem colocado e retirado tantos ditadores militares,
os Estados Unidos pegaram e impuseram o presidente Jean-Bertrand Aristide,
que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a
história do Haiti e que havia tido a louca aspiração de querer um país menos
injusto.
* *
*O voto e o veto *

Para apagar as nódoas da participação norte-americana na
ditadura carniceira do general Cedras, os infantes de marinha levaram 160
mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe
permissão para retomar o governo, mas o proibiram exercer o poder. Seu
sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, porém mais poder
que Préval tem qualquer burocrata de quarta categoria do Fundo Monetário ou
do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha sequer eleito com um
voto apenas.

Mais que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que
Préval, ou algum de seus ministros, pede créditos internacionais para dar
pão aos famintos, instrução aos analfabetos o terra aos camponeses, não
recebe resposta, ou o contradizem ordenando-lhe: - Faça a lição! E como o
governo haitiano nunca aprende que deve desmantelar os poucos serviços
públicos que ainda permanecem, últimos pobres amparos para um dos povos mais
desamparados do mundo, os professores acabam sempre por reprová-lo.
* *
*O álibi demográfico*

No final do ano passado quatro deputados alemães visitaram o
Haiti. Assim que chegaram, a miséria do povo os atingiu frontalmente. Então
o embaixador de Alemanha lhes explicou, em Porto Príncipe , qual é o
problema: - Este é um país demasiadamente povoado - disse-. A mulher
haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode.

E riu. Os deputados se calaram. Essa noite, um deles, Winfried
Wolf, consultou as cifras. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o
país mais superpovoado das Américas, tanto quanto a Alemanha: tem quase a
mesma quantidade de habitantes por quilometro quadrado. Em sua passagem pelo
Haiti, o deputado Wolf não apenas foi atingido pela miséria: também ficou
deslumbrado pela capacidade de expressar a beleza dos pintores populares. E
chegou à conclusão de que o Haiti está superpovoado… de artistas.
Na realidade, o álibi demográfico é mais o menos recente. Até a alguns anos,
as potências ocidentais falaram bem mais claro.

* *

*A tradição racista*



Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país
até 1934. Retiraram-se quando alcançaram seus dois objetivos: cobrar as
dívidas do City Bank e revogar o artigo constitucional que proibia a venda
de terras aos estrangeiros. Robert Lansing, então secretário de Estado,
justificou a prolongada e feroz ocupação militar explicando que a raça negra
é incapaz de se governar por si mesma, que possui “uma tendência inerente à
vida selvagem e uma incapacidade física de civilização”. Uno dos
responsáveis pela invasão, William Philips, havia elaborado anteriormente a
sagaz idéia: “Esse é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização
que tinham deixado os franceses”.


O Haiti havia sido a pérola da corona, a colônia mais rica da
França: uma grande plantação de açúcar, com força de trabalho escrava. No
espírito das leis, Montesquieu o havia explicado sem travas na língua: “O
açúcar seria demasiado caro se não trabalhassem os escravos para sua
produção. Esses escravos são negros desde os pés até a cabeça e têm o nariz
tão esmagado que é quase impossível ter deles alguma pena. Resulta
impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma e
sobretudo uma alma boa num corpo inteiramente negro”.


Em troca, Deus havia colocado um chicote na mão do feitor. Os
escravos não se distinguiam por sua vontade de trabalho. Os negros eram
escravos por natureza e vadios também por natureza; e a natureza, cúmplice
da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir ao amo e o amo
devia castigar o escravo, que não mostrasse o menor entusiasmo na hora de
cumprir com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de
Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: “Vagabundo,
desocupado, negligente, indolente e de costumes dissolutos”. Mais
generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro
“pode desenvolver certas habilidades humanas, como o papagaio que fala
algumas palavras”.

* *

*A humilhação imperdoável*



Em 1803, os negros do Haiti ocasionaram uma tremenda derrota às
tropas de Napoleão Bonaparte e Europa não perdoou jamais essa humilhação
infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os
Estados Unidos haviam conquistado antes sua própria independência, porém
conservava ainda meio milhão de escravos trabalhando nas plantações de
algodão e de tabaco. Jefferson, que era senhor de escravos, dizia que todos
os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão
inferiores.


A bandeira dos livres se içou sobre as ruínas. A terra haitiana
havia sido devastada pele monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades
da guerra contra a França. Uma terça parte da população havia caído em
combate. Então , começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à
solidão. Ninguém comprava dela, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.

* *

*O delito da dignidade*



Nem mesmo Simão Bolívar, que soube ser tão valente, teve a
coragem de assinar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar
poderia ter reiniciado sua luta pela independência americana, quando já
havia derrotado a Espanha, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano lhe
havia entregado sete navios, muitas armas e soldados, com a única condição
que Bolívar libertasse os escravos, uma idéia que ao Libertador não lhe
passava pela cabeça. Bolívar cumpriu com esse compromisso, porém depois de
sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país
que o havia salvado. E quando convocou as nações americanas para a reunião
do Panamá, não convidou o Haiti, mas sim a Inglaterra.


Os Estados Unidos reconheceram o Haiti depois de sessenta anos
do final da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio
francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque
possuem pouca distância entre o umbigo e o pênis. Naquele instante, o Haiti
já estava nas mãos de carniceiras ditaduras militares, que destinavam os
famélicos recursos do país para pagar a dívida com ex-metrópole: a Europa
havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à Francia una indenização
gigantesca, como modo de ver-se perdoado por ter cometido o delito da
dignidade.



* **A história do assédio contra o Haiti, que em nossos dias tem
dimensões de tragédia, é também una história do racismo na civilização
ocidental.*
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URL do artigo : *http://www. cubadeba te.cu/opinion/ 2010/01/15/ los-pecados-
de-haiti/
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