quarta-feira, 17 de março de 2010

Dupla Moral

Cuba, Israel e a dupla moral *

*Breno Altman*


Tem sido educativo acompanhar, nos últimos dias, a cobertura
internacional dos meios de comunicação, além da atitude de
determinadas lideranças e intelectuais. Quem quiser conhecer o
caráter e os interesses a que servem alguns atores da vida política
e cultural, vale a pena prestar atenção ao noticiário recente sobre
Cuba e Israel.

Na semana passada, em função de declarações do presidente Lula
defendendo a autodeterminação da Justiça cubana, orquestrou-se vasta
campanha de denúncias contra suposto desrespeito aos direitos
humanos na ilha caribenha. Mas não há uma só matéria ou discurso
relevante, nos veículos mais destacados, sobre como Israel, novo
destino do presidente brasileiro, trata seus presos, suas minorias
nacionais e seus vizinhos.

Vamos aos fatos. No caso cubano, Orlando Zapata, um pretenso
“dissidente” em greve de fome po r melhores condições carcerárias,
preso e condenado por delitos comuns, foi atendido em um hospital
público por ordem do governo, mas não resistiu e veio a falecer. Não
há acusação de tortura ou execução extralegal. No máximo,
insinuações oposicionistas de que o atendimento teria sido tardio –
ainda que se possa imaginar o escândalo que seria fabricado caso o
prisioneiro tivesse sido alimentado à força.

Mesmo não havendo qualquer evidência de que a morte do dissidente,
lamentada pelo próprio presidente Raúl Castro, tenha sido provocada
por ação do Estado, os principais meios e agências noticiosas
lançaram-se contra Cuba com a faca na boca. Logo a seguir o
Parlamento Europeu e o governo norte-americano ameaçaram o país com
novas sanções econômicas.

*Indústria do martírio*

Outro oposicionista, Guilherme Fariñas, com biografia na qual se
combinam muitos atos criminosos e alguma militância anti co munista,
aproveitou o momento de comoção para também declarar-se em jejum.
Apareceu esquálido em fotos que rodaram o mundo, protestando contra
a situação nos presídios cubanos e reivindicando a libertação de
eventuais presos políticos. Rapidamente se transformou em figura de
proa da indústria do martírio mobilizada pelos inimigos da revolução
cubana a cada tanto.

O governo ofereceu-lhe licença para emigrar a Espanha e lá se
recuperar, mas Fariñas, que não está preso e faz sua greve de fome
em casa, recusou a oferta. Seus apoiadores, cientes de que a
constituição cubana determina plena liberdade individual para se
fazer ou não determinado tratamento médico, o incentivam para
avançar em sacrifício, pois não será atendido pela força até que seu
colapso torne imperativa a internação hospitalar. Aliás, para os
propósitos oposicionistas, de que grande coisa lhes valeria Fariñas
vivo?

O presidente Lula tornou público, a s eu m odo, desacordo com a
chantagem movida contra o governo cubano. Talvez fosse outra sua
atitude, mesmo que discreta, se houvesse evidência de que a situação
de Zapata ou Fariñas tivesse sido provocada por ato desumano ou
arbitrário de autoridades governamentais. Para ir ao mérito do
problema, comparou a atitude dos dissidentes com rebelião hipotética
de bandidos comuns brasileiros. Afinal, ninguém pode ser considerado
inocente ou injustiçado porque assim se declara ou resolva se
afirmar vítima através de gestos dramáticos.

*O silêncio da mídia*

Sem provas bastante concretas que um governo constitucional feriu
leis internacionais, é razoável que o presidente de outro país
oriente seus movimentos pela autodeterminação das nações na gestão
de seus assuntos internos. O presidente brasileiro agiu com essa
mesma cautela em relação a Israel, país ao qual chegou no último dia
14, apesar da abundância de provas que compro metem os sionistas com
violação de direitos humanos.

Mas as palavras de Lula em relação a Cuba e seu silêncio sobre o
governo israelense foram tratados de forma bastante diversa. No
primeiro caso, os apóstolos da democracia ocidental não perdoaram
recusa do mandatário brasileiro em se juntar à ofensiva contra
Havana e em legitimar o uso dos direitos humanos como arma contra um
país soberano. No segundo, aceitaram obsequiosamente o silêncio
presidencial.

A bem da verdade, não foram apenas articulistas e políticos de
direita que tiveram esse comportamento dúplice. Do mesmo modo agiram
alguns parlamentares e blogueiros tidos como progressistas, porém
temerosos de enfrentar o poderoso monopólio da mídia e ávidos por
pagar o pedágio da demagogia no caminho para o sucesso, ainda que ao
custo de abandonar qualquer pensamento crítico sobre os fatos em
questão.

Um observador isento facilmente se daria conta que, ao contrá rio
dos eventos em Cuba, nos quais o desfecho fatal foi produto de
decisões individuais das próprias vítimas, os pertinentes a Israel
correspondem a uma política deliberada por suas instituições dirigentes.

*Sionismo e direitos humanos*

A nação sionista é um dos países com maior número de presos
políticos no mundo, cerca de onze mil detentos, incluindo crianças,
a maioria sem julgamento. Mais de 800 mil palestinos foram
aprisionados desde 1948. Aproximadamente 25% dos palestinos que
permaneceram em territórios ocupados pelo exército israelense foram
aprisionados em algum momento. As detenções atingiram também
autoridades palestinas: 39 deputados e nove ministros foram
seqüestrados desde junho de 2006.

Naquele país a tortura foi legitimada por uma decisão da Corte
Suprema, que autorizou a utilização de “táticas dolorosas para
interrogatório de presos sob custódia do governo”. Nada parecido é
sequ er insinua do contra Cuba, mesmo por organizações que não
guardam a mínima simpatia por seu regime político.

Mas o desrespeito aos direitos humanos não se limita ao tema
carcerário, que é apenas parte da política de agressão contra o povo
palestino. A resolução 181 das Nações Unidas, que criou o Estado de
Israel em 1947, previa que a nova nação deteria 56% dos territórios
da colonização inglesa na margem ocidental do rio Jordão, enquanto
os demais 44% ficariam para a construção de um Estado do povo
palestino, que antes da decisão ocupava 98% da área partilhada. O
regime sionista, violador contumaz das leis e acordos
internacionais, hoje controla mais de 78% do antigo mandato
britânico, excluída a porção ocupada pela Jordânia.

Mais de 750 mil palestinos foram expulsos de seu país desde então.
Israel demoliu número superior a 20 mil casas de cidadãos não-judeus
apenas entre 1967 e 2009. Construiu, a partir de 2004, um mu ro com
700 q uilômetros de extensão, que isolou 160 mil famílias
palestinas, colocando as mãos em 85% dos recursos hídricos das áreas
que compõem a atual Autoridade Palestina.

Pelo menos seiscentos postos de verificação foram impostos pelo
exército israelense dentro das cidades palestinas. Leis aprovadas
pelo parlamento sionista impedem a reunificação de famílias que
habitem diferentes municípios, além de estimular a criação de
colônias judaicas além das fronteiras internacionalmente reconhecidas.

*Dupla moral*

São, essas, algumas das características que conformam o sistema
sionista de apartheid, no qual os direitos de soberania do povo
palestino estão circunscritos a verdadeiros bantustões, como na
velha e racista África do Sul. O corolário desse cenário é uma
escalada repressiva cada vez mais brutal, patrocinada como política
de Estado.

Mas os principais meios de comunicação, sobre es ses fatos, se
calam. Também mudos ficam os líderes políticos conservadores. Nada
se ouve tampouco de alguns personagens presumidamente progressistas,
sempre tão céleres quando se trata de apontar o dedo acusador contra
a revolução cubana.

Talvez porque direitos humanos, a essa gente de dupla moral, só
provoquem indignação quando seu suposto desrespeito se volta contra
vozes da civilização judaico-cristã, da democracia liberal, do livre
mercado, do anticomunismo. Não foi sem razão que o presidente Lula
reagiu vigorosamente contra o cinismo dos ataques ao governo de Havana.

Breno Altman é jornalista e diretor editorial do sítio Opera Mundi
(www.operamundi.com.br )

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