terça-feira, 23 de março de 2010

A Ética no Culto Afro-Brasileiro

A ÉTICA NO CULTO AFRO-BRASILEIRO


Em 2008 três jovens evangélicos atacaram um centro espírita do bairro carioca do Catete, próximo ao centro da cidade. Não importava que a orientação da casa fosse da linha dita de Umbanda cardecista, de cunho particularmente pacífico. Possuía imagens e era o que bastava. Casos assim proliferam, como se sabe, não passando um ano sem que se tenha notícia de vários pelo País, sem contar outras ocorrências como a mãe-de-santo que passou mal ao ver a sua foto estampada e demonizada na capa de uma folha evangélica. E tudo isso, de forma muito justa, rende processos contra os infratores.
No entanto não há reação quando alguém abre as festividades de fim de ano pendurando uma faixa no quintal dizendo assim: Limpeza de fim de ano / se alguém lhe incomoda (sic), destrua / informe-se aqui. Esta versão escrachada do faz e desfaz qualquer trabalho, que todos lamentamos ver pelos postes da cidade, deveria ter chamado a atenção das autoridades ou pelo menos da polícia, pois até onde se sabe é proibido por lei anunciar eu mato gente (ou “afirmo matar” o que dá na mesma do ponto de vista da ética). Enquanto isso as mães-de-santo dos postes são perseguidas pela Prefeitura, não pela ameaça que se subentende no texto, mas por sujar os postes enfeando a cidade. Tanto que menos da metade dos cartazes traz esse dístico, e todas as responsáveis são igualmente perseguidas. Ou todas igualmente deixadas em paz, conforme sopram os ventos nos gabinetes refrigerados; a infração é a suposta sujeira, mas ninguém investiga além, numa espécie de holografia das prioridades do poder no nosso País. Tais anúncios porém, ao contrário da faixa aludida, procuram cuidar um tanto da apresentação estética e de certa forma entraram para a memória afetiva do povo, fornecendo material bruto para os humoristas profissionais e os da rede virtual. Afinal a tônica nos anúncios de poste é a promessa de trazer a pessoa amada em 3 dias, esta sim frase onipresente; e não eliminá-la, amada ou odiada, neste ou noutro prazo.
Não fica a coisa apenas em promessas escritas em faixas, nem é necessário artifício tão chamativo para entrar em caminhos indevidos. Anos atrás, pelo início da década de 1990 alguns crimes envolvendo vítimas crianças chocaram o País, os países na verdade, pois um ou dois envolviam criminosos argentinos que haviam seguido a recomendação de um chefe de terreiro brasileiro, o qual se dizia umbandista, raptando e assassinando menores na intenção ilusória de abrir o próprio caminho. Exportamos então café, travestis, jogadores de futebol, igrejas Universais e pelo menos para esse país limítrofe, Umbanda; resta a saber qual Umbanda é exportada. Ou melhor, se isto que se exportou era de fato Umbanda.
Não se pode impedir o feiticeiro de urdir feitiços negativos; qualquer um de nós que saiba mexer com magia tem esse caminho à sua frente, mas só o toma quem quer. Da mesma forma, qualquer um de nós da raça humana opta diariamente por não matar ao próximo, por não prejudicá-lo – e alguns optam pelo oposto. Não se pode controlar por portaria nem o pistoleiro nem o feiticeiro, nem o envenenador: pois para o bem e para o mal da nossa espécie, portaria não controla a mente humana. Mas se pode punir um feiticeiro, como a qualquer pistoleiro que anunciasse a sua arte macabra, dificultando que a venha pôr em prática.
Nem se pode sempre saber quem é de fato da Umbanda ou quem foi um dia e ainda acha que é. Conheço mais de um caso em que o babalorixá chama entidades de Umbanda (sempre da linha dos Compadres) para segundo a orientação da casa, deixar recado para o cavalo ou atender ao público. Nem tem importância o rótulo sob o qual trabalhe a pessoa que se propõe destruir ao próximo para, acredita, desobstruir caminho próprio ou de terceiros; importantes são os resultados. Ainda que não envolvam crianças: não existe afinal uma idade a partir da qual é moralmente lícito prejudicar ou ser prejudicado. Se a pessoa se faz chamar pai ou mãe, se a pessoa se reconhece e é reconhecida trabalhando na magia, à sombra de qualquer culto de matriz afro-brasileira, pisca o alerta laranja, no caso das faixas. Vibra o alerta vermelho, nos casos onde já houve prejuízo à vítima. Escape ela com vida, como o menino das agulhas , os meninos das agulhas porque foram vários; ou ao contrário faleça, como nos casos de sacrifícios referidos, no Pará, no interior do Brasil ou perpetrados na Argentina por brasileiros.
Como umbandista sou compelida a insistir no brasileiros, já que um dos motivos de orgulho da Umbanda é ser a mais conhecida das religiões nascidas no Brasil. É uma vergonha para nós, mais do que para os demais, que desta forma se esteja exportando, ou com alguma sorte, se tenha um dia chegado a exportar. Como praticante de culto de fonte mista de forte influência afro-brasileira, não quero para mim ou meus irmãos de santo a lei de Gérson, segundo a qual o essencial é ganhar sempre; se é direito nosso ir à Justiça contra os que depredam os terreiros, devemos também levantar a voz contra os que sujam a religião. Por fim como cidadã, exijo coerência. Não pode haver dois pesos e duas medidas. Praticar culto afro-brasileiro, ou qualquer outro culto, não livra ninguém de ter de agir dentro da lei, nem confere imunidade moral. Basta de silêncio.
Já foi dito, e escrito, notadamente por Reginaldo Prandi , que a Umbanda se prejudicou, criou para si uma armadilha, ao tentar “separar o bem do mal”. É bem verdade que Prandi amenizou o que essa declaração poderia vir a subentender, em seu romance policial Morte nos Búzios onde é lembrado com insistência que no candomblé não existe sacrifício humano. Mais uma vez, não se trata de aprofundar a polêmica candomblé versus Umbanda até porque os feiticeiros envolvidos em crimes de morte - detectados ou não!- não se vêem pertencer necessariamente, de forma definida e restritiva, a um ou a outro. Estas práticas estão acima desta rixa tola, assim como a condenação a elas deve também estar. E na hora em que vemos cultos populares como a Umbanda serem declarados patrimônio imaterial brasileiro, fazer magia com ética é obrigação que chega junto com a condecoração. Qualquer promoção acarreta novos deveres.
O bem e o mal estão dentro de cada um de nós e a vida não tem rascunho. Vamos caminhando e errando e tentando errar menos. Ou assim deveria ser. E se somos capazes de gritar bem alto quando são agredidos nossos terreiros, na hora em que um de nós se torna agressor não temos o direito de dizer pudicamente, não julgo para não ser julgado. Certos pudores cheiram mal.
O Poder público, afinal, não quer os cartazes nos postes porque remetem a terreiros e batuques, coisa de selvagens. Se supusermos que esse Poder tem por parâmetro de ser humano correto as pessoas que nas Câmaras e no Congresso representam a nação, e precisamos todos acreditar que as tem sim por parâmetro, comprovaremos o que sempre se pôde aqui comprovar, que o porte da gravata (ou do escarpin) santifica, já que ali encontramos muitos cidadãos acusados dos mais variados crimes, para ficar só nos que deles já foram acusados, inclusive crimes de morte; porém sempre de terno e gravata. E despacham de escritórios que faxineiras, pagas com dinheiro público, vêm limpar todo dia, onde se vê a fotografia do governante do momento, de onde saem pilhas de material de propaganda impresso com selos oficiais: longe do nível artesanal da cola passada no poste, e das bolas de cristal que ainda nas primeiras décadas do século passado eram apreendidas pela Polícia Civil, que mantém exemplares delas e de materiais afro-brasileiros no Rio, em seu Museu (de acesso restrito a pesquisadores que caiam no gosto do delegado, o que exclui a maioria dos praticantes). Pois as videntes eram acusadas de iludir a população, pecado esse reservado aos nobres deputados em campanha eleitoral. Hoje os cristais e os búzios estão dentro da lei, mas contra os anúncios de postes volta e meia a lei fulmina, não, repito, pela ameaça à vida alheia contida nas palavras faz e desfaz qualquer trabalho quando por acaso tais palavras estão presentes; e sim pelo aspecto artesanal, vil, pé de chinelo, num país em que ainda se acham pessoas que não carregam embrulho para não desmerecer.
Não devemos esperar que o Poder venha condenar ou proibir. Ele é feito de gente de carne e osso, sujeita às mesmas limitações que nós, gente que pode achar certo anunciar que elimina aos outros, gente que talvez tenha medo do feitiço, ou medo de ser acusado de preconceito religioso, gente que em alguns casos sente tamanho desprezo por todos nós que não nos enxerga ou não enxerga diferenças. De nós devem partir claras condenações a práticas como as citadas. E da pretensão de abrir caminho por cima de um corpo, deixemos que o Astral se encarregue.


RESUMO????? TRADUZ????




BIBLIOGRAFIA
PRANDI, Reginaldo, O Brasil com axé, volume 52 dos Estudos Avançados da USP, 2004
PRANDI, Reginaldo, Morte nos Búzios, Companhia das Letras
D´ ARRUDA, Gisela, Umbanda Gira, Pallas
D´ ARRUDA, Gisela, www.caminhodasfolhas.com (marcadores Umbanda do blog)
Também serão de grande ajuda as coleções do Jornal do Brasil e do Globo para as décadas mais recentes.
Bio
Gisela d´Arruda começou trabalhando com idiomas; hoje é terapeuta holística com formação principal de acupuntura, e forte tempero de florais e fitoterapia. Na Umbanda trabalhou em terreiro como cambona e médium, função que ocupou pela maior parte dos sete anos em que lá permaneceu. Publicou entre outros as não-ficções Sinais de Vida e Umbanda Gira, sendo esta pela editora Pallas. É também autora da peça Baseado e escreve o blog www.caminhodasfolhas.com .

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