domingo, 19 de setembro de 2010

Debate Aberto



DEBATE ABERTO
Brasil: a retomada da história
Os oito anos do governo Lula têm, entre outros méritos, o de fazer o Brasil retomar o leito da História interrompida em 1964, agora em novo patamar. Se méritos não se quisesse encontrar no governo atual, há um que é incontestável: a possibilidade e a redescoberta do protagonismo popular.
Izaías Almada
No reinado do neoliberalismo econômico dos últimos anos muito se falou no fim da História e das ideologias, teoria que já trazia em si a própria negação do que enunciava, mas não custava aos seus teóricos e defensores tentar emplacar a idéia. Historiadores, sociólogos e principalmente economistas, em ligação direta ou mesmo submetidos aos interesses de corporações e de governos dos principais países capitalistas, elegeram o mercado como o deus regulador de todas as atividades sociais, transformando as relações humanas, até as mais simples e efêmeras, em simples mercadorias. Em termos capitalistas tal fato não se constitui propriamente numa novidade, apenas subiu o tom de autopropaganda e o grau de exploração do trabalho pelo capital, na efetiva criação de mecanismos de defesa cada vez mais sofisticados para este, enquanto se procurava e se procura pelo paulatino desmantelamento das garantias e dos direitos dos trabalhadores.A emblemática crise atual em França, que na verdade é européia e mundial, demonstra o nível desse conflito, onde mais uma vez se tenta penalizar os trabalhadores (no caso, os aposentados), maiores vítimas do sistema, quando a L’OREAL, a grande empresa de cosméticos francesa, é beneficiada em milhões de euros por favores e trapaças do governo de Sarkozy.Por aqui, ao sul do Equador, nunca será demais lembrar que a criminosa e sangrenta derrubada do governo de Salvador Allende no Chile em 1973 deu início, na America do Sul, ao uso do amargo remédio para os males e sofrimentos terceromundistas, fosse o “doente” um país capitalista ou pré-capitalista emergente.No Brasil, pós-ditadura civil militar de 64/68, já no limiar dos anos 80, a teoria ganhou adeptos e defensores fervorosos entre sociais democratas, democratas cristãos e até em alguns ninhos esquerdistas, aliando-se - à inevitável competição mercadológica - o conceito de liberdades democráticas, isto é, mercado livre (sem intervenção do Estado ou intervenção mínima), democracia representativa com eleições livres de tantos em tantos anos... E o país ingressaria numa era de prosperidade e progresso... E quem sabe, para o desejo de muitos, até o final dos tempos. Em outras palavras: para consumo doméstico, as liberdades democráticas e as liberdades econômicas vinham substituir o período autoritário, aqui identificado como a imposição de um nacionalismo sob botas militares e de censura a qualquer tipo de contestação ou oposição, mas de inegável valor profilático, contudo, ao livrar o país das ideias socializantes ou comunizantes, consoante o jargão dos jornais da época e de senhoras marchadeiras na ocasião.Na verdade, a angústia, a violência e o medo à repressão, bem como as dificuldades do período ditatorial e o natural alívio provocado pela retomada da democracia formal, ofuscou no país o sentido mais substantivo e mais amplo da participação popular na vida política brasileira, exceção feita durante a campanha pelas eleições diretas ou anos antes com a passeata dos cem mil no Rio de Janeiro. O golpe civil e militar de 1964 e o seu aprofundamento com o famoso Ato Institucional nº 5 em dezembro de 1968 se caracterizou, antes de tudo, como uma interrupção violenta e inconstitucional de uma democracia construída pelo voto popular entre nós, a duras penas, após a Segunda Guerra Mundial. Democracia que caminhava, entre outros objetivos estratégicos políticos e sociais, à procura de um fortalecimento da incipiente indústria nacional aliado a um sentimento nacionalista, independentista e anticolonial. Vários países seguiram por essa trilha, diga-se de passagem. Em África, na Ásia e na América Latina.Não é do desconhecimento de ninguém que a derrota imposta ao nazifascismo em 1945, as vitórias da revolução chinesa e cubana e as lutas anticolonialistas, principalmente em África e na América Latina, permitiram ao mundo respirar novamente os ares libertários e reorganizar em tempo não muito longo a economia abalada e deteriorada pela guerra. E nessa reorganização do capital, uma vez mais, como Sísifo, os utopistas do trabalho apostaram suas fichas numa outra reorganização social baseada em conceitos de igualdade e solidariedade. Contudo essa utopia viria enfrentar nos anos 80 e 90, bem como no início do século XXI enormes dificuldades, caracterizada não só pela tentativa de esvaziamento do pensamento humanista solidário, substituído por um pensamento mercadista único, mas também a de ver a transformação dos grandes meios de comunicação (estuário natural das ideias conservadoras e apoiador também natural do modelo) em corporações cada vez mais poderosas na defesa não só do capital financeiro improdutivo, mas em benefício próprio e de seus grandes anunciantes, consumando-se assim uma poderosa barreira para o desenvolvimento independente de nações como o Brasil. O quarto poder assumiu-se como tal.Sem povo na rua para a defesa de conquistas sociais e/ou políticas (a luta do MST pela reforma agrária e a sua mobilização na invasão de terras improdutivas não tem contado necessariamente com o total apoio da maioria da sociedade), sem uma agenda de discussões sobre algumas das principais reformas exigidas pelo país, tais como a própria Reforma Agrária, a Reforma Política, a Reforma Fiscal e até mesmo uma Reforma do Judiciário, o país perdeu nos últimos 50 anos, com raríssimas mobilizações que não enchem os dedos de uma mão, a capacidade de manifestar nas ruas o seu desejo de mudanças estruturais. Nada, pelo menos, que se possa comparar às manifestações populares dos últimos anos vistas na Bolívia, na Argentina, no Equador, na Venezuela, por exemplo. Ou mesmo na recentíssima greve geral francesa contra a política previdenciária de Sarkozy.O Partido dos Trabalhadores, aglutinador de movimentos sociais pós ditadura, conseguiu pontualmente em épocas eleitorais e até a primeira eleição do presidente Luiz Inácio da Silva em 2002 reunir boa parte de sua militância em assembléias, comícios e passeatas, mas foram algumas das últimas manifestações do gênero. As marchas e mobilizações do MST parecem não ter criado um canal condutor de solidariedade concreta entre a sociedade brasileira e o próprio movimento, independente de suas justas aspirações e reivindicações.Quando é possível evocar os grandes comícios pré-64, o tão famoso comício da Central do Brasil, por exemplo, as passeatas estudantis, as assembléias sindicais, a agitação cultural, as manifestações das Ligas Camponesas é também possível ver com clareza porque as chamadas elites brasileiras sempre tiveram e têm medo do povo nas ruas (“É preciso acabar com essa raça”, sentenciou recentemente um senador de olhos azuis). O conluio EUA/ditaduras no Cone Sul mostrou isso à exaustão, já com inúmeros documentos desclassificados pela própria CIA e o Departamento de Estado norteamericano.Quando o governo brasileiro atual e o presidente Lula têm uma taxa de aprovação em quase oitenta por cento da população e sua candidata Dilma Roussef atinge altos índices de intenção de voto não é por acaso que se começa a ver nas ruas e praças, mesmo que apenas com o apelo de uma campanha eleitoral, um renovado início da presença e manifestação popular, graças à percepção dentro de suas casas e de seus empregos de que sua vida mudou para melhor. E isso não precisa ser confirmado por estatísticas oficiais. Pode-se comprovar também em conversas com cidadãos mais humildes, normalmente indefesos diante do sistema econômico que lhes foi dado para viver. Confirma-se também pela novidade da contra-informação na internet, onde o grande filão da nova tecnologia eletrônica tem contribuído para democratizar a informação, não só contrapondo-se ao pensamento único da velha mídia, mas dando voz a milhares e milhares de brasileiros que querem se manifestar politicamente. O país parece querer retomar uma prática democrática que se caracteriza não só pela inserção social de seus cidadãos mais humildes, mas também pela possibilidade de voltar a discutir o seu próprio destino como povo e nação. E discuti-lo de forma mais aberta e democrática, inclusive nas ruas.Alguém já disse que a História não se repete senão em tragédia ou farsa, mas até os aforismos históricos estão aí para serem contestados. Podemos concordar com eles, mas quando a história política de um país é interrompida pela violência das armas, pela tentativa de se impor um pensamento único, hegemônico, como nos anos 60, quando menos se espera, ela – a História – ressurge em seu leito vistoso, procurando como os rios o natural caminho do mar.Se méritos não se quisesse encontrar no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, há um que já se pode dizer incontestável: a possibilidade e a redescoberta do protagonismo popular. Não interessa ainda se pelo bolso ou se por algum e pequeno indício de consciência política. O caminho se faz caminhando, já disse o poeta. Os oito anos do governo Lula, entre outros méritos, para desespero dos que ainda preferem o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo, ou para desconsolo dos que insistem em substituir a realidade por teorias revolucionárias que não se encaixam no xadrez geopolítico atual, tem o mérito de fazer o Brasil retomar o leito da História interrompida em 1964, agora em novo e aliciante patamar.
Escritor e dramaturgo. Autor da peça “Uma Questão de Imagem” (Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos) e do livro “Teatro de Arena: Uma Estética de Resistência”, Editora Boitempo. -----Anexo incorporado-----
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