quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Irmãs Negras

IRMÃS NEGRAS MISSIONÁRIAS DE JESUS CRUCIFICADO:
movimento ético-estético de construção de uma nova pedagogia e política institucional.

Olga Vieira[1]

Mestre pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul e
Missionária de Jesus Crucificado



O presente artigo nasce da pesquisa ‘NEGRO E EDUCAÇÃO’ 3o. CONCURSO DE DOTAÇÕES PARA PESQUISA - AÇÃO EDUCATIVA[2], São Paulo, 2003/4, com o objetivo de dar visibilidade ao movimento do “Grupo de Irmãs Negras, Missionárias de Jesus Crucificado", em seus quase vinte anos de caminhada na Congregação, no período 1986-2004. Redimensiono o trabalho para apresentação no II Congresso Latino-Americano de Gênero e Religião, com um novo olhar sobre o tema da pesquisa, para dele extrair um outro ponto de vista, ou seja, qual epistemologia informava a instituição religiosa, na época de sua fundação que, em nome de Deus, se organiza em dupla classe: Missionárias Coristas, a jovem branca, de família socialmente bem posicionada, para a missão direta na sociedade; Missionárias Oblatas, toda jovem negra, independente de estudo ou família e a jovem branca, sem estudo, oriunda de família sem influência social, especialmente para os trabalhos domésticos.

DELINEAMENTO METODOLÓGICO

O delineamento metodológico foi traçado através da leitura dos documentos institucionais arquivados na sede da secretaria geral, em Campinas; da análise dos relatórios dos Encontros de Irmãs Negras, no período 1986-2004; das Histórias de Vida de cinco irmãs, rebatizadas, de diferentes regiões da congregação, a partir dos seguintes critérios: negra, ter sido oblata, participante do Movimento Negro e algumas representantes da organização em atividades como coordenadoras, articuladoras e/ou fundadoras do Movimento, assim como participantes de outros Movimentos Negros, fora do contexto congregacional.


HISTÓRIA DA CONGREGAÇÃO: algumas pinceladas
No início do século vinte, mais precisamente, 1922, em Campinas/SP, importante cidade cafeeira de reconhecida tradição escravagista, um grupo de moças, brancas e negras, movidas pelo sentimento cristão de ir aos mais necessitados, fundou, orientada pelo sacerdote salesiano Padre Giovaninni, a Associação das Missionárias de Jesus Crucificado, elegendo Maria Villac como presidente. Irmã Lydia Pompeo, uma das associadas, negra, considerada posteriormente, fundadora também, revela, em 1986:
Eu já conhecia a irmã Maria Villac que se reunia com a gente na Igreja de Santa Cruz, em Campinas e, às vezes, na casa dela mesmo com as outras, diferentes da gente [ela se refere aí às moças ricas, filhas dos barões do café], só que a reunião era feita em dias diferentes [...] (PINTO, 2003, p. 48-49).

Mais tarde, D. Francisco de Campos Barreto[3], 2º Bispo da diocese de Campinas/SP, propõe à presidente da referida Associação, transformá-la em uma Congregação Religiosa. Com o seu assentimento, nasce a Congregação das Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado, no dia 03 de maio de 1928, naquela cidade paulista. A primeira madre geral, da novel Congregação, foi Madre Maria Villac, cargo que ocupou até 1971. Eram onze, as primeiras irmãs missionárias: oito brancas e três negras, porém somente as irmãs brancas foram, inicialmente, consideradas fundadoras. As moças negras tornam-se, aqui, a primeira pedra de tropeço na organização da instituição. Para acomodá-las foi decretada, constitucionalmente, a separação da Congregação em dupla classe.
As jovens negras passaram imediatamente à invisibilidade da clausura, onde respondiam pelo trabalho doméstico e pelas iniciativas de manutenção da Congregação, sem direito a falar, a estudar, a fazer apostolado. Estava plantada, assim, a semente da incompatibilidade de ‘cor’ no convento, que conhecerá outros desdobramentos e conflitos, no decorrer da sua história. Delas, é exigida total disposição, para auxiliar o Instituto em todos os seus múltiplos empreendimentos. Depois da profissão religiosa, que são os votos de pobreza, obediência e castidade, a Oblata fica incorporada ao Instituto podendo ser enviada, para prestar serviço, a qualquer outra Casa das Missionárias, sempre sob as ordens da madre local. Não podiam votar nem ser votadas. Onde está a novidade? A Congregação nasceu igualmente desigual, pois tudo continuou para nós, negras e brancas pobres, como no tempo da escravidão, dividindo as irmãs em duas classes e nos deixando somente para os trabalhos domésticos[4] (Irmã Gerusa, negra, 83 anos, 2004). Foram acrescentados, aos votos religiosos, dois votos congregacionais, Mansidão e Maria, responsáveis pela vivência de uma espiritualidade intimista e introspectiva, que imprimiam sentido à vida de sacrifício e de doação, estampados na mística de Tudo sofrer e a ninguém fazer sofrer! Os votos e a exigência de sua prática, podem facilmente ser manipulados como instrumento de submissão, de coerção e de sofrimento, identificando-se com abuso de poder e de autoridade, afastando-se do seu real sentido, que é a liberdade.
Ao afirmar que a Oblata pode ser enviada para prestar serviço a qualquer outra Casa das Missionárias, as Constituições permitem o entendimento de que as Oblatas não estão vinculadas à Instituição, com igualdade de pertencimento. Deduz-se daí, a razão da permanência de algumas irmãs, nos mesmos locais de trabalho, desenvolvendo a mesma atividade por trinta, quarenta ou mais anos. Era a lógica do trabalho, quem respondia pela transferência ou permanência da Irmã Oblata naquela comunidade, que, apoiada no texto constitucional, favorecia a subordinação de seus corpos apenas aos trabalhos domésticos, como corpos completos, sem falta, não desejantes. O trabalho doméstico, no contexto social, era visto como trabalho escravizado, portanto, de segunda categoria. Deduz-se que as Irmãs Oblatas eram consideradas irmãs de segunda classe, para trabalhos de segunda categoria. A irmã negra vê-se relegada constitucionalmente ao espaço doméstico, como um reconheça o seu lugar, numa leitura mais ampla sob a ótica da discriminação, própria da sociedade hierárquica, escravocrata brasileira.
O convento, em sua clausura, oferece como que um território de exílio às missionárias Oblatas, negras, ao segregá-las do contato com a sociedade, a cultura, a literatura, o convívio social. É a face oculta e violenta da instituição religiosa. Uma situação de dupla classe, que permite reunir as condições ideais do que podemos chamar, nos dias atuais, de reserva de mercado, uma vez que disponibilizavam os braços das Oblatas tão somente para o cuidado das Casas das Missionárias, de Seminários Menores Diocesanos[5], Casas Episcopais, Casas Paroquiais e, em alguns casos, prestação de serviço aos familiares de algumas Irmãs Missionárias Coristas.
Estava prevista também a ordem de precedência, ou seja, a lei que regulava a ocupação dos lugares nas filas, na capela, no refeitório, onde a madre geral precedia a todas as irmãs, mesmo as superioras locais. As Irmãs Missionárias Coristas precediam sempre as Irmãs Oblatas. A mais jovem missionária, corista, ficava à frente da mais antiga oblata. Das Irmãs Oblatas não se exige alguma cultura especial como também nenhuma missão na sociedade, mas somente que se apliquem aos trabalhos domésticos, o que também não impede que a Superiora possa pedir seu concurso para os trabalhos externos (Const. 1931...)
Assim, o Fundador explicita a natureza da instituição, que, em seu nascedouro, legitima a separação, como competência. Ao negar às Missionárias Oblatas o direito de votar, nega-lhe o direito à cidadania, a ser gente, o que coincide com a posição política aristotélica a respeito do tratamento diferenciado dado às mulheres, às crianças e aos escravos. Há, porém, uma contradição, ao excluir as Oblatas do direito a votar, internamente, pois, pelo fato da emissão pública dos votos religiosos, essas irmãs conquistam, na totalidade, o direito igual ao conjunto das componentes da instituição.
Dom Barreto (1936, p. 93), explicando as Constituições, enaltece a organização da Congregação em “[ . . . ] dupla classe [...]”, como uma inspiração do céu, naturalizando-a:
Compõe-se o Instituto de duas classes de religiosas – as Missionárias de Coro e as Oblatas. E as senhoras vêem que isto foi mesmo uma inspiração do céu, foi um trabalho de Nosso Senhor. Mas vemos nesse ramo de religiosas uma inspiração do céu, pois recebemos nesse meio de Oblatas, moças piedosas, de verdadeira vocação, porém, que não seriam recebidas em Congregação nenhuma[6]. Mas, para conforto de nossas Oblatas, tenho a dizer que Nossa Senhora era mesmo Missionária, fazia seu apostolado, mas Nossa Senhora também varria a sua casa, cozinhava, fazia todo o serviço de sua casa de Nazaré, que eu visitei. Portanto, por outro ponto de vista, digo que as senhoras são continuadoras das obras de Nossa Senhora. (BARRETO, 1936, p. 93)

Em 01 de agosto de 1939, afirma: “A divisão de classes é chocante, mas é necessária, e as nossas Oblatinhas já entraram sabendo disto [ . . . ]” (BARRETO, 1939).

Não cabe na minha cabeça que, no mesmo nome, na mesma família missionária, tanta exclusão e violência! Uma parte, excluída da mesa. Isso não é lúcido. Onde está a transformação? (Irmã Lúcia, 2003).

Voltando às irmãs negras, assim como a escravidão, viram que aquilo não era maneira de tratamento para um ser humano, que era tratado como ‘um nada’! Violência e desigualdade dentro da Congregação, não só da negra, mas da mais pobre e com menos cultura. Aproveitaram o ‘saber-fazer’, mas não prepararam as pessoas para o mundo. Todas essas, viviam escondidas, ficavam lá, e não só as negras. Tanta coisa! É um poço fundo e, nesse resgate, a gente tira, tira, tira e não acaba de tirar... Ninguém tá batendo em ninguém, mas falando do que aconteceu, juntando com a história do Brasil sobre o negro. (Irmã Gerusa, 2003).

A divisão de classe, na instituição, traz consigo, de forma tão sutil, a divisão de raça, uma vez que como mulher negra e em função da cor de sua pele, será forçosamente da classe Oblata, não deixando nenhuma margem de escolha entre as duas classes. Neste caso, o grande definidor de sua pertença à classe oblata, é a cor da pele. Temos, assim, a questão de classe mascarando o racismo. Importante perceber que, quando falamos na divisão de classes, a irmã negra vê sua identidade tornada invisível, diluída, sob o nome genérico de Irmã Oblata.
No contexto, a prática do silêncio, que, a meu ver, muito se aproxima do silenciamento, uma vez que impossibilita a linguagem, nas suas variadas formas de expressão, é proposta como regra:

Todo o tempo da vida religiosa é de silêncio. A regra geral da vida religiosa é silêncio, silêncio. Silêncio de manhã, ao meio dia, à tarde, à noite, na 2a. feira, na 3a. feira, na 4a. feira, na 5a. feira, na 6a. feira, no sábado, no domingo, também. Silêncio em janeiro, em fevereiro, em março, em abril, em maio, em junho, em julho, em agosto, em setembro, em outubro, em novembro e em dezembro. A regra geral da vida missionária é silêncio, minhas Filhas, é silêncio! O santo silêncio! É a primeira observância. “Escrevam isto, escrevam! [ . . . ], escrevam por toda parte para não esquecerem mais, nunca. Ó que vida santa é a vida religiosa! Silêncio por amor! Mas um silêncio rigoroso para se fazer companhia a Nossa Senhora.” (MACEDO, 1950, p. 3-6).

Nesse modo de impor silêncio às irmãs, com a intenção de torná-las boas religiosas, constatamos com Gebara (2000) que o pensamento condutor do projeto institucional apresenta um perfil patriarcal, conservador, colonialista, cujo sistema envolve a produção da violência entre as mulheres. É uma forma de construção do conhecimento que vê a pessoa como objeto.
Irmã Gerusa (2004) ao tecer comentários sobre esse longo tempo de silêncio imposto, apropria-se da palavra e produz o seu discurso, às avessas, porque parte da experiência de que calar é ser escravo e sabe que ao falar faz frente não a uma pessoa, mas a um discurso que reconhece ambivalente, mesmo sendo pronunciado pelo Fundador.

Os fundadores erraram em fazer a divisão de classes. Com isso, trouxe este sofrimento que até hoje nos machuca, porque negou tudo, nos colocou lá embaixo, como seres inferiores. Hoje, não querem que a gente olhe para trás. Eu acho que pensam que o outro não tem direito de pensar. Como não olhar para trás, se é lá que está plantada a nossa história? É como esta plantinha aqui, ela tem a sua história, e, se eu acho ela bonita hoje, tenho que acolher que ela já foi semente. Isto não dá para negar. Na planta está toda a história que permitiu que ela tivesse flor hoje. Como negar? Assim é com os Fundadores, eles são santos, mas não deixaram de pecar. E o pecado desta Congregação foi esta divisão em classes e nos abafar estes anos todos sem direito a nada, ao estudo, ao apostolado, a ser gente. Eles tinham poder, e por que não usaram em favor de todas? Aquilo que fizeram de bom, e fizeram muita coisa, nós temos que dar valor, por exemplo, nenhuma Congregação recebia moças negras, a nossa recebeu, tudo bem. Mas por que nos trancaram dessa maneira? Dizem que algumas irmãs brancas, fundadoras, não queriam, mas eles eram os fundadores! (Irmã Gerusa, 83 anos, 2004).


UNIFICAÇÃO DAS CLASSES

Em 08 de janeiro de 1967, Madre Maria Villac comunicou à Congregação, por meio de uma circular o rescrito da Santa Sé sobre a unificação das classes e dispensa do Noviciado. Acrescentou, porém:
Todavia por utilidade e mesmo por necessidade de uma revitalização da Vida religiosa, em clima de Vaticano II, desejei que, embora dispensadas da obrigação do noviciado, as Irmãs todas[7], antes de integrarem a Classe Única, se recolhessem nas próprias Províncias, para quatro meses de aprimoramento da Vida Religiosa e maior conhecimento da doutrina do Vaticano II. (MISSIONÁRIAS DE JESUS CRUCIFICADO, 1998, p. 189).

O teólogo e historiador, Padre Oscar Beozzo, no VII Encontro de Irmãs Negras e Indígenas, (São Leopoldo, 2004), fala sobre o processo de unificação das classes como um equívoco, uma vez que, novamente, atinge somente as Oblatas:
Reconciliação ou refundação para o que foi chamado unificação das classes, processo que atingiu, equivocadamente, somente a classe oblata: A Congregação tratou o processo de unificação como se a sala tivesse só uma parede. Onde ficou a outra parede? A casa não se sustenta somente sobre uma parede, ela cai, pois uma parede tem relação com a outra e isto não foi levado em conta. Não foram trabalhadas as relações entre elas. Pela reciclagem, ou ‘Cursos de Atualização’, deveriam passar as coristas. As duas classes teriam que ser suprimidas e fazer uma refundação. Aqui está a raiz de uma questão nunca resolvida (BEOZZO, 2004, informação oral).

A Congregação, ao promover a unificação de classes, pela supressão apenas da classe oblata, posicionava-se a favor da idéia de uma convivência pacífica entre as partes, dispensando-lhes um tratamento homogêneo, apelando para a igualdade na convivência, sem considerar as discriminações, por ela mesma favorecida, durante décadas. Sob o véu do “sagrado” instalou, na verdade, uma sequência de violência contra a mulher, negra, (branca) e pobre, hoje chamada violência doméstica, expondo seus membros a novos sofrimentos, sem possibilidade de defesa, porque tudo era ‘em nome de Deus’. Como decorrência da unificação das classes novo mapa se desenha na instituição que vai alterar sua rotina, aos poucos. Algumas irmãs começam a ensaiar os primeiros passos na missão, embora timidamente no início, pois sentem a defasagem em sua preparação para uma atuação eficiente. Nova crise se delineia, pois há resistência de acolhimento a essas irmãs, em algumas comunidades inseridas, uma vez que as irmãs ex-oblatas, negras e/ou brancas, podem agora participar da vida missionária, morando em pequenas comunidades, onde estão as ex-Coristas.


COMO BRISA SUAVE

Os movimentos são um sinal. Não são apenas produtos de uma crise, os últimos efeitos de uma sociedade que morre. São, ao contrário, a mensagem daquilo que está nascendo. Como os profetas, “falam à frente”, anunciam aquilo que está se formando, sem que ainda esteja clara a direção e lúcida a consciência (MELUCCI, 2001).

O Movimento de Irmãs Negras surgiu na história da Congregação como um sinal. Sinal que atinge o âmago da inspiração fundacional, quando dá visibilidade às irmãs negras da primeira hora, e as eleva ao patamar de fundadoras, como uma questão de justiça. Sinal de que o mesmo tempo, que guardou suas dores, devolve-lhes a alegria em participar da vida do povo, que tece, em conjunto, a libertação. Sinal que anuncia diferentes caminhos de formação. Sinal de esperança, que resgata o direito de “ir em busca” dos mais necessitados, nos lugares mais difíceis, núcleo do carisma, que coloca em conflito o direito à diversidade, na vida comunitária, e que provoca a descontinuidade no pensamento conservador da estrutura da vida religiosa.
Os primeiros passos do Movimento das Irmãs Negras acontecem em 1979, com o início do Grupo União e Consciência Negra, do qual Maria Raimunda Ribeiro da Costa, MJC, é uma das fundadoras. Participam do grupo as missionárias Maria Marcelina Nobre, Maria Benedita de Souza e Maria Júlia Pires. No início de 1983, as irmãs missionárias se reúnem em Belo Horizonte/MG para avaliar sua participação no Grupo União e Consciência Negra e na Congregação. Em junho de 1983, o Noviciado de Chapecó/SC e a Região de Porto Alegre/RS, promovem um Encontro para estudo sobre a caminhada dos grupos negros no Brasil, com a assessoria de Irmã Raimunda.
Encontramos na Bíblia Sagrada (1990, I Reis 19, 11-13) uma metáfora muito interessante que compara Deus com uma brisa suave, sutil. Essa metáfora inspira-me a dizer como percebo o Movimento de Irmãs Negras, no interior da Congregação, até porque ninguém pode controlar a brisa, pois, vai penetrando em todos os lugares e ocupando todos os espaços, mesmo os mais fechados. Está aí e, a sua presença, é condição de vida. Não é ventania, não é ciclone, não é tufão; é brisa suave, aquela brisa, que todos/as nós já sentimos no rosto, como uma carícia. Assim, começa a correr, entre as irmãs negras, de várias Regiões, aquela brisa suave, contendo a mensagem perigosa do “vamos nos reunir para conversar?” Esta brisa sopra sem que ninguém possa enclausurá-la. Algumas irmãs negras sentem, nela, um prenúncio de libertação. Falam sobre ela em cartas, telefonemas, a viva voz, ao pé do ouvido, provocando entre si, um mutirão missionário, “anunciando”, segundo as palavras do Fundador, “[ . . . ] com voz de júbilo, que o Senhor libertou o seu povo [ . . . ]” (BARRETO, 1936, p. ...).
Em 1986, acontece o primeiro Encontro Nacional de Irmãs Negras, em Brumadinho/MG, e, chegam de vários lugares, 32 irmãs, representando oito das nove Regiões da Congregação no país. Pode parecer pouco significativo ou até irrisório esse número, uma vez que, das 1222 irmãs no período, 383 eram negras, porém a expressão de abertura do encontro, registrada no Relatório: “Que Festa! [...]”, nos dá a dimensão do significado que tal Encontro representa para cada uma, que a ele acorreu e das possibilidades de releitura da história, que se abre. “É a primeira vez que viajo para participar de um Encontro [...]” (RELATÓRIOS..., 1986, p. 3). Garantem, nesse Encontro, um espaço para descansar suas dores e seus sonhos. Ouvem, também, histórias e experiências do seu povo, que foi escravizado. Fazem o engate de sua própria história que, às vezes, se aproxima tanto.
Tentam reconhecer e mapear o rosto de inimigos comuns, o sistema capitalista e o sistema religioso. Descobrem que a divisão que o sistema político faz, em classes e em raças, é para melhor exercer o domínio sobre os povos e as pessoas. E não ficam paradas. Querem mais. Projetam para 1988, em Salvador/BA, o segundo Encontro, marcando a passagem centenária da abolição da escravatura, aberto a todas as irmãs negras, que desejam conhecer a Bahia, mesmo as que não participam do grupo. São até entendidas, na instituição, como turistas. Iniciam, celebrando a ressurreição de Irmã Dulcy Catharinese de Macedo, escolhida como Patrona do Grupo, que deu a vida articulando o Encontro em sua Região.
No dia 08 de julho daquele ano, às 20.00 horas, 105 mulheres, religiosas, negras, cantam o Hino da Congregação, abrindo o evento, ao som do atabaque. A alegria toma conta de todas, que superaram barreiras, especialmente, financeiras. Atentas, aprofundam suas raízes como negras, sua história de opressão institucional em confronto com o cativeiro bíblico, descrito no Êxodo 03, 01-11 (BÍBLIA..., 1990), tendo como personagens centrais da libertação, Moisés e Zumbi. Descobrem pontos comuns entre racismo e cativeiro, espelhando seus sentimentos na realidade em que vivem:
Sem história e sem memória. Desrespeitadas, humilhadas, sem voz e sem vez, sem dignidade. Exploração no trabalho, semelhantes à escravidão. Dons reprimidos e iniciativas abafadas. Racismo na Igreja e na Congregação. Sem raiz, oprimidas. Falta de espaço na Congregação. Exploração com ideologia de caridade. Medo. Complexo de incapacidade. Guerra fria, igual a racismo. Sem passado e sem presente. Insegurança. Preconceito na Congregação. O cativeiro deixou marcas profundas: matou vidas e iniciativas (RELATÓRIOS..., 1988, p. 10).

Passando pela organização dos Quilombos, como crítica à sociedade, chegam ao terreiro do Candomblé, uma outra maneira possível de vivência e expressão da fé, com as mais variadas reações na instituição. Fazem repensar. Recriam quilombos comunitários. Desconstroem idéias congeladas pelo tempo, crenças, legalismos. Despertam para a participação nos Encontros Regionais. Escolhem duas representantes para o CGA (Conselho Geral Ampliado). Decidem enviar notícias para o Boletim Caminha Missionária. Assim, como a brisa leve, vão ocupando espaços, nunca antes pensados. Redimensionam o papel das Articuladoras Regionais.
Os Encontros se sucedem: 1990, Nova Veneza/SP; 1993, Goiânia/GO; 1996, Nova Iguaçu/RJ; 2000, Fortaleza/CE; São Leopoldo/RS, 2004 e, para 2009, está previsto para Campinas/SP. Os primeiros encontros eram chamados de Encontro Nacional de Irmãs Negras - Missionárias de Jesus Crucificado. Após 1996, com a participação de irmãs indígenas e com a possibilidade da presença de irmãs do exterior: Angola, Moçambique, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Equador, Nicarágua, o encontro passou a se chamar Encontro Congregacional de Irmãs Negras e Indígenas.
Percorro, na pesquisa, o caminho dos Encontros Congregacionais, desde 1986, valendo-me dessa metáfora para dizer que, de maneira sutil, quase imperceptível, há uma brisa suave anunciando, à sua passagem, que a libertação pode vir de onde não se espera, ou seja, das/os excluídas/os e abandonadas/os. Esse Movimento dá visibilidade a toda epopéia que cerca a articulação dos Encontros de Irmãs Negras e Indígenas, desde o econômico-financeiro que, politicamente, quase inviabiliza a realização dos mesmos, o que as obriga a buscarem nos trabalhos alternativos artesanais, na venda de quitutes, no trabalho como bóias-frias e outras formas, a garantia da continuidade dos mesmos e a possibilidade de participação, elas, que têm consciência que dedicaram toda a vida na construção do patrimônio da Congregação, e que agora não desfrutam de seus benefícios.
Na esteira dessa reflexão podemos dizer que os Encontros são uma forma de re-escrita da história, sob uma nova ótica e nova estética, nos quais as missionárias se assumem como mulheres negras, indígenas, religiosas, cidadãs. Quando esses encontros começaram, ninguém poderia prever o que iria acontecer, atesta Irmã Raimunda: Foi na cara e na coragem. No processo, dialogaram com a instituição e para fora dela e, assim, construíram uma nova consciência e uma nova epistemologia, rompendo com o mundo em que viviam e com a forma de pensamento único, patriarcal e dominante. Descobrem brechas de participação e de libertação, que temperam um novo universo de significados em suas vidas, revolucionando-as. Enquanto caminham, trocam experiências de aprendizagens. Há sinais reveladores, desde o modo como se organizam, em Articuladoras Regionais, até a discussão democrática da pauta dos encontros. É o espaço em que fazem o exercício da tomada de decisões; decidem e votam sobre a sua continuidade ou não, o lugar, a data, a época, a captação de recursos, os temas e assessorias.
Organizadas, constroem o saber como relação. A escolaridade permite que se construa o saber, mas não é tudo. Ninguém está autorizada a falar: fico no silenciamento. Aqui se forja um estado pedagógico para romper com o não sei, não posso. O espaço do movimento é o espaço em que cada uma se sente legítima e se identifica. Papel fundamentalmente político e social tem este Movimento de Irmãs Negras e Indígenas, porque marca o reconhecimento de que a/o afro-brasileira/o, o/a indígena são pessoas de direitos, com diferenças, que demandam respeito, como outra raça. Há o direito conquistado ao espaço-território para o ser e estar. No decorrer da história do movimento das irmãs negras, as primeiras Missionárias Oblatas recebem o reconhecimento como fundadoras, também.
A tradição da Congregação considerava, como Fundadoras, apenas as 08 primeiras Missionárias coristas. [...]. Dom Barreto, no Decreto de Fundação da Congregação, exarado a 03 de maio de 1928, já deixava definido que esta teria duas classes: Irmãs Missionárias e Irmãs Oblatas. Assim sendo, a Congregação só se completou com a entrada das primeiras três Missionárias Oblatas. Por isso estas três Irmãs, Maria do Espírito Santo Ferreira, Lydia da Conceição Pompeo e Anésia Miquelina de Andrade, são também consideradas Fundadoras. Elas entraram realmente antes da Fundação Oficial da Congregação. A imprecisão deste dado histórico foi clarificada pela Circular no. 11/96 de 04 de agosto de 1996, da Superiora Geral, Irmã Cirene Tereza Bünhemann e sua equipe (MISSIONÁRIAS DE JESUS CRUCIFICADO, 1998, p. 61).

A leitura dos Relatórios dos Encontros Congregacionais de Irmãs Negras e Indígenas, em cruzamento com as entrevistas, apontam para uma realidade que, apesar de conter o selo da Vida Religiosa, com suas regras próprias, carimbadas pelo Vaticano, não deixa dúvidas que foi realmente um tempo de escravidão, reeditado no escondido espaço ‘sagrado’. Instalou-se, no mesmo ambiente, a realidade de uma Casa Grande e Senzala, cópia fiel de um tempo maldito dos senhores de engenho no Brasil, que, com tristeza, conhecemos a sua história. Lá, eram negros batizados, aqui, negras consagradas. Ambos, porém, vítimas da tirania dos algozes, que os faziam trabalhar ao esgotamento, sob olhares fiscais, controladores.
Qual a diferença entre os dois tempos? Onde mora o medo de abrir esta página, que transborda uma realidade viva, que traduz a crueldade, pois conhecemos seus nomes, seus rostos, ouvimos suas vozes, conhecemos suas dores, tocamos com nossos dedos suas chagas, quais Tomé, convivemos com sua indignação, pobreza e sentimos sua insegurança?
A análise de Gerusa (2003) passa pela memória histórica da escravidão do negro no Brasil, e pelos hábitos dos senhores/as donos de escravos/as, e que são reconhecidos no espaço religioso pela ótica do trabalho, da produção. Hábitos reconhecidos também pela negação, pela ausência de relações igualitárias, de participação. Ao contrário, foram escondidas.
Com certeza que hoje vão deixar nós de lado. Vê que começam a se desfazer de nós, nas comunidades. Primeiro, nos espalharam por todos os lugares mais difíceis. Agora, elas vão morar só, entre elas, e quando precisam de alguém para o serviço da casa, chamam uma empregada de fora. Só assim não precisam nos mostrar às outras pessoas. Como fomos escondidas! Esconderam enquanto puderam. Sentiam vergonha de nos mostrar, até o dia em que foram obrigadas a nos mostrar. Sentiam vergonha de nós. Imagina terem que conviver agora, com as Oblatinhas, de igual para igual! Não foi fácil. Até hoje, não conseguem viver normalmente conosco. Mas também nos deixaram sem estudo, sem nada (Irmã Gerusa, MJC, 2003).

Nesta reflexão, novamente, aparece o ponto frágil das relações, que é o escondimento, a vida privada, o descarte, a desigualdade, a violência. Gerusa vai desvelando uma política que perpassa as relações entre as duas classes, e mostra a impossibilidade de uma convivência normal.
Gebara acolhe Gerusa em sua dor, ao afirmar:
Como sabemos a religião nem sempre foi um lugar isento de violência. Ao contrário, em diversas situações, a religião não foi apenas um lugar de violência, mas a justificação última da violência praticada contra as mais diversas pessoas. [...]. Levando em conta que a mensagem das religiões em geral, e de modo particular do cristianismo, é garantir a vivência humana a partir dos valores fundamentais de toda existência, parece contraditório que esses mesmos valores tenham podido gerar formas de cumplicidade com a violência social. (GEBARA, 2000, p. 155-6)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto a Congregação se envolve em um demorado conflito de poder, após a substituição da geral Maria Villac, em 1971, as irmãs oblatas avançam para as áreas das quais haviam sido subtraídas durante décadas, e se aliam às populações mais carentes, nos lugares mais distantes, seja no Brasil ou fora do país, sempre privilegiando o mais pobre que, em última instância, fora o suspiro fundacional, a inspiração primeira, que aglutinou as participantes da Associação. A pedra rejeitada torna-se pedra angular, numa referência ao evangelho. Não só vão até às camadas populares, como inserem sua moradia no meio delas, vivem uma vida muito parecida com a delas, mesmo na pobreza, que é real, pois, para lá levam para a sobrevivência, um ou dois salários mínimos, que se torna moeda de crédito. Esse fato coloca a todos, irmãs e povo, na mesma dimensão da partilha solidária, em que trocam o pouco que tem, com simplicidade e por necessidade de se manterem viva/os. Aquelas, que não caminham para a inserção, continuam sustentando o trabalho em suas comunidades ou casas grandes, que ainda vigoram.
Duas grandes vertentes desse caudaloso rio, porém, as irmãs negras ainda não conseguiram reverter: o acesso ao econômico, com igualdade de direitos e a participação nas equipes coordenadoras da instituição, salvo raras exceções. Politicamente, ainda se encontram fracas. Desde a Associação, origem da Congregação, quando entraram pela porta dos fundos, reunindo-se no porão da casa da fundadora, persistem insistentes na busca de inclusão, mobilizam-se, organizam-se e, porque não dizer, desenvolvem um grande e autêntico projeto de evangelização ad intra, oferecendo o abraço de reconciliação às companheiras. Uma imagem muito plástica, que pode enriquecer o que desejamos dizer é a história de Jacó, personagem bíblico (Gen 32), que sendo gêmeo, teria roubado o direito de progenitura a seu irmão Esaú. Criou, com certeza, grande conflito familiar, por isso resolveu fugir para bem longe. A Congregação, podemos dizer, também roubou à classe oblata, o direito à progenitura, deixando-as em último lugar na ordem de precedência, tratando-as, historicamente, como inferiores. Hoje, já mais amadurecida, mais capacitada a rever a história com menos paixão emocional, precisa ouvir a mesma voz que sugere o retorno a Jacó (Gen 33,12-14), iniciando, assim, o caminho de volta. Eu me aproprio dessa imagem como moldura para pintarmos um outro quadro, que dará destaque à tela da composição do Instituto das Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado, em dupla classe. Vimos que este modo de organização deixou cravado, desde seu nascimento, um espinho no corpo institucional, responsável pelas consequências dolorosas ao longo de toda a sua história. Nesse espinho, porém, pode estar sugerido à instituição, um outro toque, qual flecha na coxa de Jacó, a indicar-lhes caminhos possíveis de reconciliação!
“Este caminho, vocês, irmãs negras, já estão fazendo através dos Encontros, que eu acho uma coisa inédita, e, com isso, vocês estão se reerguendo e nos salvando, pois a nossa dívida, a dívida da Congregação, para vocês é grande”, disse a atual Superiora Geral, no VII Encontro de Irmãs Negras e Indígenas, em São Leopoldo/RS, 2004.
Falar em reconciliação supõe movimento das duas partes, implicadas no processo. Movimento que coloca a caminho, uma em direção a outra, após uma longa noite de luta com Deus, em que, atingidas no tendão da coxa, quebram a resistência que, por ventura, persista. Sabemos que Jacó fora surpreendido pelo irmão que corre ao seu encontro e o abraça. Cabe a nós detectar os sinais de alguém, que já se colocou em movimento, para nos encontrar! Deixar-se alcançar por alguém, de quem lhe roubamos a progenitura, o direito de ser gente, é o milagre da reconciliação. Nesse dia cairão a ordem de precedência, prescrita nas Constituições, a imposição de serviços pesados, a negação dos direitos, o silêncio que anula a pessoa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BEOZZO, José Oscar. VII Encontro de Irmãs Negras e Indígenas, São Leopoldo, 2004: informação oral.

BÍBLIA Sagrada. Ed. Pastoral. São Paulo: Paulinas, 1990.

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GEBARA, Ivone. Rompendo o Silêncio. Vozes: Petrópolis, 2000.

______. Teologia Ecofeminista. São Paulo: Olho d’Água, 1997.

MACEDO, Manoel Correia de. Cadernos de Retiros Espirituais. Campinas, SP: [s.n.], 1947-1958. Trabalho datilografado.

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MISSIONÁRIAS DE JESUS CRUCIFICADO. Nossa História. Campinas, 1998.

PINTO, Elisabete Aparecida. O Serviço Social e a Questão Étnico-Racial: um estudo de sua relação com usuários negros. São Paulo: Terceira Margem, 2003.

POLIANTÉIA do Jubileu de Prata da Congregação das Missionárias de Jesus Crucificado. Revista da CRB, Rio de Janeiro, 1953. Suplemento.

RELATÓRIOS dos Encontros de Irmãs Negras: 1986-2004. [S.l.: s.n.], [200-]. Textos digitados.
[1] E.mail para contato: olgav.voy@terra.com.br
[2] Orientado pela Profª. Drª. Malvina do Amaral Dorneles, UFRGS.
[3] 1º Bispo de Pelotas/RS, nomeado por Pio X, através da Bula “Dilectis Filiis, de 12 de maio de 1911”.
[4] As transcrições de partes de entrevistas, realizadas entre 2003 e 2004, estão em itálico para diferenciar das
citações.
[5] “Haja vista o bem imenso, que fazem aos Seminários Diocesanos, inclusive nos misteres humildes e sublimes
das Oblatas, sua assistência doméstica aos Seminaristas. Bem merecem de Deus e da igreja de Deus, o cento
por um e, mais, o reino do céu.” (CARDEAL MOTTA, Arcebispo de São Paulo, apud POLIANTÉIA, 1953, p.
186).
[6] Segundo Gerusa, esta é uma referência, velada, às moças negras, pois somente elas não eram recebidas em nenhuma Congregação, nessa época.
[7] Da classe oblata.

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