quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Quilombolas

Estadão, 22.11.2010

Medida, à espera de julgamento no Supremo Tribunal Federal, foi proposta pelo DEM, contrário a desapropriações de terras em domínio privado

Roldão Arruda e Mariângela Gallucci - O Estado de S.Paulo

A questão da demarcação e titulação das terras de quilombos pode se transformar num dos debates mais políticos e polêmicos do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011, a exemplo do que ocorreu no ano passado com o julgamento sobre os limites da terra indígena Raposa Serra do Sol.

O assunto também estará na pauta do Congresso e de movimentos sociais. Já foram encaminhados ao STF 26 pedidos para que o assunto seja debatido em audiências públicas, antes do julgamento.

O que os ministros do STF devem julgar é uma ação proposta pelo DEM, pedindo que seja declarado inconstitucional o Decreto 4487, assinado em 2003 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, regulamentando o processo de titulação das terras de remanescentes de quilombolas.

O ato de Lula atendia ao capítulo das disposições transitórias da Constituição de 1988 que reconheceu os direitos das comunidades, sem especificar o processo. De 1988 para cá, segundo informações da Secretaria da Igualdade Racial e da Fundação Cultural Palmares, 3524 comunidades quilombolas foram identificadas no País. Esse número ainda pode aumentar.

Um dos pontos do questionamento do DEM é o capítulo do decreto que permite às comunidades se autoidentificarem como quilombolas, "a exemplo do que ocorre com os índios", e, a partir daí, a reclamar terras. Critérios históricos e antropológicos deveriam ser prioritários, segundo o DEM.

Outro ponto polêmico é a extensão das propriedades. Parte das comunidades reclama apenas as terras que ocupam. Outras, porém, almejam a titulação de áreas que eram ocupadas por seus antepassados.

O DEM também questiona a decisão presidencial de dar poderes ao Instituto Nacional de Colonização e reforma agrária (Incra) para conduzir o processo, desde os estudos iniciais até a titulação e a indenização de proprietários que sejam obrigados a deixar áreas supostamente ocupadas por antigos quilombos.

A Advocacia-Geral da União (AGU) e a Procuradoria-Geral da República defendem o decreto. Em manifestação enviada ao STF em 2004, o então advogado-geral Álvaro Ribeiro Costa posicionou-se a favor de desapropriações. "Ainda que algumas terras não sejam efetivamente ocupadas pelos quilombos, ainda que se comprove que eles não ocupavam outras terras à época da abolição da escravatura ou ainda que não permanecessem nelas, na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, tais circunstâncias não são suficientes para impedir o reconhecimento da propriedade", sustentou.

 

Estadão, 21.11.2010

Primeira  Página

Concessões a quilombolas viram desafio para Dilma

O presidente Lula entregará amanhã o título de propriedade da terra aos moradores da comunidade Ivaporunduva, no interior de São Paulo. O evento passará ao largo das crescentes tensões que envolvem a demarcação de terras quilombolas – uma herança espinhosa para Dilma Rousseff. Estimativa mostra que, se todas as comunidades identificadas forem atendidas, o governo terá de titular 8,5 milhões de hectares – quase duas vezes o Estado do Rio.

Roldão Arruda

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva entrega amanhã o título de propriedade da terra aos moradores da comunidade Ivaporunduva, reduto quilombola do interior de São Paulo, em Eldorado Paulista. O evento terá tom festivo, passando ao largo da polêmica e das tensões cada vez mais maiores que envolvem a demarcação de terras quilombolas - uma das questões espinhosas no passivo social que deixará para Dilma Rousseff.

O título a ser entregue, de forma simbólica, uma vez que vigora desde maio, abrange uma área de 2,7 mil hectares, na qual vivem 70 famílias de uma comunidade tradicionalíssima, cujas origens remontam ao século 17. Ele é uma pequena parte de um grande problema: faz parte de um lote de 113 terras quilombolas tituladas, diante de um conjunto de 3.524 comunidades identificadas, segundo dados da Secretaria da Igualdade Racial - todas elas interessadas em títulos.

De acordo com estimativa feita pelo Estado, se todas as comunidades identificadas forem atendidas, o governo terá de titular 8,5 milhões de hectares - o equivalente a quase duas vezes o Estado do Rio. É uma estimativa conservadora, com base na média de títulos já expedidos, que totalizam 971,3 mil hectares, beneficiando 11.506 famílias.

No cálculo foram excluídas, por serem casos excepcionais, grandes extensões de terras devolutas tituladas no Pará e o Quilombo Kalunga, no sertão de Goiás - o maior já regularizado. Tem 253,2 mil hectares, hoje pertencentes a 600 famílias.

Novo cenário. As previsões de que as tensões devem aumentar no próximo governo estão relacionadas principalmente a informações contidas em relatórios do Incra. Eles mostram que as terras regularizadas eram quase todas devolutas - o que significa que pertenciam ao poder público e podiam ser tituladas com baixo índice de conflito.

Outra informação dos relatórios é que mais de 60% das terras tituladas estão na Região Norte, em áreas de florestas, ainda pouco visadas pelo agronegócio.

O cenário agora é diferente. Das 3.524 comunidades identificadas, 1.523 recorreram à Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, e obtiveram o atestado oficial de que são mesmo quilombolas. E, dessas, 996 abriram processos no Instituto Nacional de Colonização e reforma agrária (Incra), pedindo titulação de suas terras.

Quem observar a lista desses processos verá que a demanda pela titulação mudou de foco. Agora cresce no Centro-Oeste, Sudeste e Sul, regiões onde o agronegócio viceja a plena carga. Outra mudança é que parte das terras reivindicadas está ocupada por proprietários rurais que possuem títulos, muitos concedidos pelo governo, e costumam ir à Justiça contestar o Incra.

A contestação começa quando o Incra divulga seu relatório técnico, feito com a participação de antropólogos, definindo o tamanho do quilombo. Neste momento estão sendo discutidos 117 relatórios, que abrangem uma área de 1,4 milhão de hectares, para 15 mil famílias.

Quando os proprietários perdem na Justiça, são indenizados. Foi o que ocorreu no caso do Quilombo Kalunga, onde 170 fazendeiros aguardam o pagamento das terras pelo Incra.

O presidente do Incra, Rolf Hackbart, não tem dúvida de que as tensões vão aumentar. Para ele, isso faz parte do processo político e decorre sobretudo da decisão do presidente Lula de assinar, em 2003, o Decreto 4.487, que regulamentou o dispositivo transitório da Constituição de 1998, sobre os direitos dos quilombolas. Segundo Hackbart, o decreto tornou efetiva a decisão dos constituintes e estimulou as comunidades a reivindicarem direitos. "Milhares de famílias que viviam esquecidas nos quilombos passaram enfim a fazer parte da República Federativa", diz.


No período 1995 a 2002, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), foram titulados 777,7 mil hectares de terras para comunidades quilombolas. Esse número é quatro vezes maior do que a área titulada no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de 193,6 mil hectares.

Para entender a diferença é preciso lembrar que no período de Fernando Henrique foram titulados quilombos mais facilmente identificados, com pouca disputa, e localizados em grandes áreas de terras devolutas. Os títulos foram distribuídos em grande parte pelos institutos estaduais de terras, responsáveis pelas áreas devolutas. Foram beneficiadas 6.771 famílias, de 90 comunidades. Lula, numa área menor, atingiu 93 comunidades e 4.735 famílias.

O Incra apareceu mais na cena em decorrência da necessidade de desapropriar áreas particulares reivindicadas pelos quilombolas. São processos mais demorados, que dependem do Judiciário. Mas não só. Assim como na questão da reforma agrária, quando evitou atualizar os índices de produtividade, para não irritar a bancada ruralista no Congresso, Lula preferiu investir mais na concessão de benefícios sociais aos quilombolas do que no confronto agrário.

As ações de governo variaram de distribuição de cestas básicas a construção de casas. Em 2008, cerca de 20 mil famílias de quilombolas estavam incluídas no Programa Bolsa-Família. No ano passado eram 25 mil.

O acesso aos benefícios estimulou novas comunidades a se identificarem como quilombolas. "Depois que se apresentam e conseguem o certificado da Fundação Palmares, as comunidades ficam aptas a acessar as políticas que beneficiam os quilombolas", diz Ivonete Carvalho, diretora de programas de comunidades tradicionais, da Secretaria da Igualdade Racial.

Nenhum órgão do governo sabe dizer quantas famílias de quilombolas vivem no País. A Fundação Palmares estima em 124 mil famílias a população das 1.523 comunidades às quais já concedeu certificados. Considerando a média de 4 pessoas por família, seriam 500 mil pessoas.
 

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