Terça, 27 de novembro de 2012

O Batuque e o negro Rio-Grandense.

Entrevista especial com Norton F. Corrêa

O Rio Grande do Sul é um estado muito racista. E o desprezo em relação à figura do negro é projetado sobre suas práticas religiosas, que continuam sendo reprimidas. Tanto a ocultação como a repressão são formas de racismo, constata o antropólogo.
Confira a entrevista.
Questionado a respeito de como o negro se apresenta na história rio-grandense, Norton F. Corrêa, em entrevista concedia por telefone à IHU On-Line, frisa que ele é ocultado. “Há o caso de um historiador gaúcho bastante conhecido, Walter Spalding, que levou tal ocultação ao máximo: afirma que não houve racismo, no Rio Grande do Sul, simplesmente porque não havia negros! Entretanto, as estatísticas da época a que se refere revelam que os negros eram quase 40% da população da então Província. Considero que a prática de ocultar também se deve ao racismo. O Rio Grande do Sul é um estado muito racista.”, frisa.
Para ele, o desprezo em relação à figura do negro é projetado sobre suas práticas religiosas, que continuam sendo reprimidas. “Tanto a ocultação como a repressão são formas de racismo. Mas ele pode se expressar de forma ainda mais sutil, como é o caso das campanhas da turma da ecologia contra os sacrifícios rituais de animais, no batuque. A sutileza está em se escudar num argumento meritório: proteger os animais. Entretanto, é curioso que em um estado com um enorme rebanho bovino, suíno, ovino e centenas de matadouros, legais e ilegais, além de outras tantas centenas de sinagogas que cumprem práticas muito semelhantes, o zelo da turma ecológica recaia apenas sobre o batuque. Por que apenas nele?”, questiona.
Norton F. Corrêa é antropólogo e professor do Programa de Pós-Graduação - PPG em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O pesquisador estará na Unisinos, no próximo dia 27 de novembro, no IHU ideias especial, abordando o tema “Corpo e concepção da pessoa comparados no batuque do Rio Grande do Sul e no catolicismo”, das 17h30min às 19h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. Maiores informações: http://migre.me/bYsim.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que maneira o senhor relata em seu livro O batuque do Rio Grande do Sul – Antropologia de uma religião afro-rio-grandense o que de fato ocorre em um templo de batuque? Como o senhor conseguiu essas informações?
Norton F. Corrêa – Consegui as informações a partir de uma longa pesquisa, 20 anos, me aproximando dos templos e ganhando a confiança de muitos sacerdotes e sacerdotisas da comunidade. O convívio com os pesquisados é imprescindível em antropologia. Então, comecei a ir a uma casa, depois em outras, durante este tempo todo.
IHU On-Line – Quais os pontos centrais de sua obra?
Norton F. Corrêa – O ponto central do livro, em minha opinião, é o capítulo onde falo sobre a visão de mundo dos batuqueiros. Ou seja, o que eles pensam sobre mundo, sobre as pessoas. E esse é um trabalho que ainda não vi em outros autores, porque é preciso ter muito convívio, muito tempo de diálogo, para poder entender esse tipo de pensamento deles, visto ser totalmente diferente do pensamento do cristianismo.
IHU On-Line – Qual foi a grande constatação que o senhor obteve com suas pesquisas sobre o batuque?
Norton F. Corrêa – A constatação foi no sentido de ter captado a visão de mundo deles. A parte mais importante do trabalho é esta: ter entendido como é que os batuqueiros pensam.
IHU On-Line – E como é que eles pensam? Qual é a visão de mundo deles?
Norton F. Corrêa – Eles pensam de uma maneira diferente. Se formos comparar a visão de mundo deles, por exemplo, com a visão de mundo cristã, veremos que nesta última a alma tem um destino específico de acordo com o que o indivíduo faz com o corpo em vida. Ou seja, se você ser prazer ao seu corpo, a alma vai para o inferno. Se você não der prazer ao corpo, ela vai para o céu. Resumidamente, a dor salva e o prazer condena.
Temos como exemplo os santos católicos: boa parte foi para o céu porque sofreu. No linguajar coloquial, as pessoas, ao se queixar de dificuldades, dizem: “paguei os meus pecados”. No caso dosbatuqueiros, não existe uma relação entre o que se faz com o corpo em vida, ou seja, se você permite ter prazer ou o que quer que seja, o destino da alma é um só. Ela fica vagando, vai para o cemitério, ou vai para outros locais, inclusive no templo,  onde são invocadas ou chamadas para ficar lá. Mas o batuqueiro não tem a ideia da existência de sofrimento ou bem-aventurança eternos, após a morte,  de acordo com o que você faz do seu corpo. Para eles, a alma tem só um destino. E essa é a grande diferença com relação à religião cristã, que prega milenarmente a repressão ao corpo.
Várias ordens religiosas, especialmente de freiras, tapam o corpo, procuram se apresentar como assexuadas, nada mais do que um reflexo das representações que têm sobre o Céu, onde não há sexo, pois este é um dos maiores, talvez o maior, fator de perdição. Observe-se que há, ainda, ordens religiosas, especialmente de freiras, em que ocultam completamente o corpo, ficando apenas com parte do rosto de fora. Para os batuqueiros, não há essa questão. As vestes das mulheres no batuque, muitas vezes, são bem abertas, decotadas, nesses rituais.
IHU On-Line – O que mais lhe impressionou ao realizar esta pesquisa?
Norton F. Corrêa – O que é muito interessante é que se trata de uma religião que está no Rio Grande do Sul há uns 150 anos, guardando tradições africanas de raiz. Eles têm um patrimônio muito importante, que se mantém apesar do tempo, possivelmente pelo fato da sociedade onde se inserem ter um forte viés europoide.
IHU On-Line – De que forma seu livro marca historicamente o início da liberdade de expressão de muitos filiados à religião afro no Rio Grande do Sul?
Norton F. Corrêa – Esta expressão foi usada por um sacerdote do batuque, Pai Rodrigo do Xapana, na contracapa do livro. Talvez porque ele gostou do fato de eu defender veementemente o direito de cada um poder praticar a religião como bem entender, sem que sofra críticas ou repressão de outrem. Geralmente as pessoas pensam que tudo é feitiçaria e que fazem mal ao próximo. O que eu fiz no livro foi mostrar a realidade deles, o que ocorre nos templos, nas cerimônias. Atualmente acho muito louvável que haja vozes e grupos de batuqueiros se levantando, reivindicando seus direitos à prática da religião, assumindo-se publicamente como religiosos, saindo às ruas. Isso é uma coisa nova, sinal dos novos tempos, porque antigamente as pessoas da comunidade eram discriminadas, desqualificadas e nada faziam. Não acredito que o livro tenha influenciado neste processo. É o crescimento de uma consciência de si mesmo, de um não à baixa autoestima.
Antropologia
A antropologia diz que é indispensável ao pesquisador conviver com os pesquisados. Então, convivi durante muitos anos com eles, conheci muitas pessoas. Creio que temos que aprender a trabalhar e conviver com o outro. Isso eles percebiam. Por exemplo, eu respeitava e respeito o que eles faziam ou fazem. Embora eu sempre me apresentasse como pesquisador, tinha uma familiaridade grande com a religião, os grupos, e eles observavam isso. Então, posso dizer que contribuiu muito para essa familiaridade o fato de eu aprender como eles pensam, como agem etc. O longo tempo de convívio me levou a estas conclusões. A integração e confiança que adquiri junto a estes grupos foi porque aprendi a entender e falar a linguagem batuqueira. E isso, então, permite que a gente aprofunde mais a pesquisa, conheça mais, tenha mais e receba mais detalhes, possa captar determinadas coisas, assistir outras que os praticantes do batuque muitas vezes não permitem que leigos assistam.
IHU On-Line – Em que sentido seu livro assinala um marco de um antes e depois na bibliografia sobre as religiões afro-brasileiras no RS?
Norton F. Corrêa – Sem me dar conta, escrevi um livro que, na opinião dos estudiosos, corresponde a um clássico, assim como os de outros autores de outros locais do Brasil que escreveram sobre as religiões de matriz afro de suas regiões. O que acontece, com relação ao batuque, é que até o momento, ninguém escreveu um trabalho mais completo, maior, que descreva os rituais, os templos, seus integrantes, o panteão e, sobretudo, a visão de mundo batuqueira, que é muito semelhante à dos participantes do candomblé, por exemplo. Especificamente sobre os rituais batuqueiros, o que há são livros escritos pelos próprios religiosos, mas nem sempre são muito bem aceitos pelo fato de menos ou mais explicitamente criticarem os colegas, reivindicar que o seu ritual é o correto e assim por diante. Além destes, há monografias e trabalhos de alunos, especialmente da UFRGS, que têm abordado questões sobre o batuque ou outras religiões de matriz afro do Rio Grande do Sul. Mas ninguém, ao que me consta, fez o que eu fiz: uma etnografia bastante completa desta religião, mostrando quem são as pessoas, o que elas fazem, como é que funciona a religião, os templos, a natureza, as suas apresentações tais como os orixás, os mortos e como é que essas pessoas vivem, como é que aprendem a ser batuqueiros. E isso é algo difícil de fazer, também, porque demanda muito tempo de convivência com os pesquisados, dá muito trabalho.
Creio que o livro é bem recebido pelos religiosos, primeiro porque eu não me posiciono, no sentido de achar que isso é verdadeiro e aquilo é errado. Há batuqueiros que condenam os outros pelo erro de desvirtuar supostos preceitos da religião. No meu caso, relato o que eu vi. Não estou me posicionando. Creio que é por isso que o livro teve uma boa aceitação. Talvez, também, pelo estilo despojado, longe do jargão "antropologuês", embora sem perda de conteúdos interpretativos, o que possivelmente contribui para que as pessoas comuns possam lê-lo sem problemas. É um livro simples, pensado para ser simples, porque acho que tem que ser assim mesmo. Escrevi um livro para ser lido por todas as pessoas, e não dirigido especificamente a acadêmicos. Apesar disso, tenho ouvido de colegas da área dizerem que escrevi um clássico, do mesmo modo que outros autores escreveram sobre religiões de matriz africana de outros locais do Brasil.
IHU On-Line – De que maneira o negro é representado na história rio-grandense?
Norton F. Corrêa – A presença da população negra no Rio Grande do Sul é muito significativa, além de o trabalho escravo ter construído as bases da economia local. Acrescente-se a indiscutível importância da herança cultural legada ao contexto rio-grandense. Apesar disso, a cultura negra tem sido muito pouco estudada  o que não deixa de ser uma forma de ocultação. Mas há o caso de um historiador gaúcho bastante conhecido, Walter Spalding, que levou tal ocultação ao máximo: afirma que não houve racismo no Rio Grande do Sul simplesmente porque não havia negros!
Entretanto, as estatísticas da época a que se refere revelam que os negros eram quase 40% da população da então Província. Considero que a prática de ocultar também se deve ao racismo. O Rio Grande do Sul é um estado muito racista. E o desprezo em relação à figura do negro é projetado sobre suas práticas religiosas, que continuam sendo reprimidas. Tanto a ocultação como a repressão são formas de racismo. Mas ele pode se expressar de forma ainda mais sutil, como é o caso das campanhas da turma da ecologia contra os sacrifícios rituais de animais no batuque. A sutileza está em se escudar num argumento meritório: proteger os animais. Entretanto, é curioso que em um estado com um enorme rebanho bovino, suíno, ovino e centenas de matadouros, legais e ilegais, além de outras tantas centenas de sinagogas que cumprem práticas muito semelhantes, o zelo da turma ecológica recaia apenas sobre o batuque. Por que apenas nele?
IHU On-Line – Por que o senhor afirma que este livro lhe trouxe uma grande surpresa? Que surpresa foi esta?
Norton F. Corrêa – Porque eu não esperava uma aceitação tão grande do livro, seja pelos batuqueiros, seja pelos estudiosos. Os primeiros, talvez porque se vejam nele; e os segundos por ser uma fonte de informação antes praticamente inexistente. Algo que me deixa muito feliz é o fato de a maioria dos leitores ser os próprios batuqueiros.