sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Angola


Antigo ministro revela pormenores da luta pelo comando do ministério da Saúde
"Até agora desconheço o motivo da miha exoneração"


Suzana Mendes [Jornal Angolense]

Ficou 732 dias a frente do Ministério da Saúde, tentou implantar uma política nacional da saúde, enfrentou com tenacidade o Marburg e a cólera, mas até ao momento não sabe porque foi exonerado. Ainda assim, orgulha-se de ter começado grandes projectos e de ter enfrentado uma forte luta de poder no sector, que, segundo o mesmo, na verdade é comandado pelo vice-ministro. Sebastião Veloso abriu o jogo sobre os bastidores do sector que comandou

ANGOLENSE (ANG) – Ficou durante tempo considerável a frente do Ministério da saúde, considerado dos mais delicados. Na hora do adeus, que balanço faz do trabalho desenvolvido?

Sebastião Veloso (S.V.) – Ficamos aqui 732 dias, o balanço é positivo, tivemos uma boa cooperação entre os técnicos, tivemos uma parceria forte com os parceiros da comunidade internacional, nomeadamente a UNICEF, a OMS e organizações não governamentais como os Médicos Sem Fronteiras. Importa realçar que se não fosse a OMS e os Médicos Sem Fronteiras teríamos muitas dificuldades em controlar a epidemia de Marburg no Uíge, assim como a de cólera. Isto significa que tecnicamente houve um grande avanço e várias realizações. Ainda assim, saímos preocupados porque depois de 30 anos de independência o país ainda não tem a política nacional de saúde. Durante estes dias lutamos para pôr num papel o que há para fazer em relação a saúde do nosso povo, isto não se conseguiu, falta concluir. Tivemos muita dificuldade em fazer com que os outros concordassem que não tínhamos o documento. Na verdade eles estavam numa situação que é preciso entender, quase trinta anos depois como não têm a política que dirige o sector fundamental de um país? Tivemos que insistir para que aceitassem a verdade. Quando aceitaram já estávamos nos últimos dias. Temos neste momento alguns peritos da OMS para ajudar os angolanos a colocar no papel uma política para o sector da saúde.

ANG – Em termos práticos, que benefícios traria este documento?

S.V. – Uma das vantagens seria ajudar a acabar com as distorções. É fácil entender as distorções que este país tem no sector da saúde, veja que no século XXI ainda temos doenças evitáveis com vacinação, com imunização, tem havido epidemias de sarampo, de tosse convulsa, assim como mortes por tétano neo-natal. Só estas três doenças demostram claramente que o país tem um problema muito sério em relação a doenças evitáveis. Entendemos que o que falta é a linha mestra, praticamente o país anda as cegas (risos). Só graças a parceiros internacionais, como a OMS, que ajudam Angola a ter programas verticais, como programas de luta contra a epidemia, tem sido possível fazer alguma coisa, de resto, tudo ficou no vazio. É assim que se não tens uma política nacional de saúde não tens como entender ou financiar o sistema, também não tens a dimensão do custo do tratamento de determinadas doenças. Esta falta conduz ainda a falha de medicamentos no hospital. A mesma situação faz ainda com que mesmo sabendo que a doença que mais mata é a malária, na altura em que ainda se tratava com cloroquina, você fosse a um hospital e não encontrava o medicamento. Se perguntássemos quanto custa a cloroquina saberíamos que é vendida por muito menos de três dólares. Os angolanos morriam por este valor mínimo. Posso dizer claramente que a nossa preocupação é que não conseguimos durante todo este tempo concluir uma linha que dirigisse correctamente a política nacional da saúde em Angola. Se o documento existisse poderíamos ter identificado as falhas. Por exemplo, como é que um país do terceiro mundo, que se encontra no subdesenvolvimento em que se encontra, faz cópias de sistemas de saúde do primeiro mundo, da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos da América?

ANG – Que outros erros identificou?

S.V. – Angola precisa de agentes comunitários da saúde, promotores da saúde, mas, como tudo foi copiado, alguém foi a França especializar- se e voltou para aqui para acabar com a figura do promotor da saúde. Mas este técnico é fundamental. Tomo como exemplo o caso da cólera, que até hoje continua, que resulta da falta de educação sanitária da população que precisa saber que atitudes higiénicas poderiam evitar a transmissão dessas doenças tão facilmente evitáveis. Sair de um gabinete e dizer ao povo que está no bairro que tem de ferver a água ou colocar lixívia antes de beber, não funciona. É preciso um educador que esteja na comunidade para educar a população. Quem deve fazer isso deve ser alguém que vive com a população. Há mais de vinte anos a OMS definiu o agente comunitário como o indivíduo da comunidade, que vive na comunidade, a quem são transmitidas capacidades técnicas e cientificas para orientar a população, evitando assim setenta porcento das doenças. É por termos eliminado esta figura que ainda temos doenças do século passado. Relatórios de organizações especializadas dizem que 67% da população vive por baixo do linear de pobreza, mas como a saúde é cara, tem que haver alguém que financia. Porque quando você diz que a saúde não é paga, o sistema não pode ficar como está. Você diz ao popular que a saúde não é paga, mas o doente não encontra o medicamento. Então, o paciente paga com a vida. Fiz um estudo e descobri porquê que a população gosta de ir aos postos de saúde que surgem como cogumelos, em condições inaceitáveis, humanamente falando. Verifiquei que nestes postos, logo que o cliente chega é imediatamente atendido, colocam-lhe o soro com uma ampola de complexo B. Esta atitude dá um conforto àquele que estava procura dos serviços de saúde. No serviço estatal que dizem ser gratuito, o doente chega as sete horas da manhã e muitas vezes, até a esta hora, uma da tarde, não é atendido. Para chegar a um hospital como o Josina Machel é preciso que o doente esteja seriamente doente. Muitas vezes o doente não precisa de internamento, poderia ser tratado em ambulatório, mas isso não ocorre. São essas distorções que fazem com que o sistema de saúde seja como ele é. Devido a estes problemas saímos tristes, oxalá que o próximo ministro possa ter maior simpatia para que possa fazer mais.

ANG – O que é preciso fazer?

S.V. – Hoje estou mais esclarecido. Veja que são adquiridas grandes quantidades de vacina, fazem-se grandes campanhas, gasta-se muito dinheiro, mas as doenças continuam. O que acontece é que essas doenças não são apenas resolvidas por campanhas, a vacinação tem que ser permanente nos postos. A mulher grávida não pode ser vacinada só mediante campanha.

ANG – Disse que o sistema de saúde "é como é". O que é que está implícito nesta sua qualificação?

S.V. – É uma saúde no século XXI com doenças evitáveis por vacinação.

ANG – Se tivesse que usar uma palavra para resumir o estado da saúde no país, qual seria?

S.V. – (Risos), é uma saúde que não deveria ser a saúde para Angola, um país rico, em paz. Para mim, toda a política ideal para este país é a que vê primeiro a saúde do povo e depois outras coisas. Se quiser comparar as contradições que este país tem, vai verificar que enquanto falta medicamentos nos hospitais, enquanto falta muita coisa nas unidades sanitárias, você tem dificuldade em caminhar nas nossas vias, porque tem carros de última geração. A mudança desta situação depende da vontade política.

"Precisava… de mais quatro meses para trabalhar"

ANG – Já falou de vários problemas que enfermam a saúde do país. Mas, enquanto ministro, o que é que fez para mudar este quadro?

S.V. – Conseguimos adquirir grandes quantidades de medicamentos, o que permitirá que em dois meses todos os postos de saúde tenham medicamentos. Depois, será apenas necessário fazer a reposição do stock. Adquirimos ainda vários aparelhos sofisticados. Sabe que gastávamos avultadas somas de dinheiro ao mandar alguns doentes para o exterior do país. Hoje, falo com a cabeça erguida que mandamos alguns, dos mais pobres aos mais ricos, no quadro da equidade na saúde. Mas, uma unidade de hemodiálise resolveria vários problemas, em três meses todos os doentes com insuficiência renal teriam voltado ao país. Esta unidade está praticamente concluída, está no hospital Josina Machel. Também deixo um aparelho bastante sofisticado de ressonância nuclear magnética que consegue ver problemas muito mais delicados. Aqueles doentes que teriam que ir para o exterior do país por falta deste aparelho, em três meses deixariam de necessitar de tal apoio. Este seria um passo muito importante porque em medicina, se não sabes o que doente tem, não tens como trata-lo. Eu precisava de mais quatro meses para trabalhar porque dentro deste período montaríamos uma unidade de cirurgia cardíaca, gastamos muito dinheiro mandando para o exterior do país doentes que têm problemas cardíacos, que precisam de transplantes, mas estávamos prestes a inverter o quadro. Que saúde deixo? voltando a sua questão. Uma saúde com doenças evitáveis, com doenças complicadas que estava convencido que dentro de dias seriam tratadas em Angola, mas que pelos vistos ainda levará algum tempo a acontecer. Digo isto porque ainda esta manhã disseram-me que os que mandam ordenaram que se parasse a montagem deste aparelho, ainda não entendi bem porquê. Digo isso publicamente porque o dinheiro que comprou a máquina não foi meu, não foi de ninguém, foi dinheiro do nosso petróleo. Quem me conheceu quando eu era deputado sabe que eu sempre disse que as receitas petrolíferas devem estar ao alcance de toda a população.

ANG – Qual é o seu principal motivo de orgulho tendo em conta o trabalho que fez no ministério?

S.V. – Nenhum. Sabe que sou médico, também sou cristão evangélico, não posso ter orgulho, porque é pecado. Mas posso dizer que aprendemos, identificamos onde é que o sistema tem falhado, porquê que a governação não atinge o popular. Porquê que apesar dos valores macroeconómicos parecerem melhores, a população continua insatisfeita, sem se beneficiar deste crescimento que aparece nos relatórios. O que sinto é satisfação, porque na janela em que estive consegui entender o mundo da governação, como deveríamos trabalhar para o bem do povo.

ANG – Vamos agora recapitular as cenas que conduziram a sua exoneração. O que é que terá levado ao seu afastamento que surpreendeu a sociedade?

S.V. – A mim também surpreendeu, mas até aqui não me disseram a causa da exoneração. Este afastamento aconteceu perante os programas de que falei, não são programas meus, são assuntos que sempre tratei com sua excelência o Primeiro-Ministro, sempre falamos dos valores implicados e da vantagem para o país. Também Fiquei surpreendido quando me disseram que a ressonância magnética também não poderia ser montada, o aparelho já está no país, está num hospital, gastamos dinheiro do nosso petróleo para deixa-la estragar-se. Mas já entendi que isso não é problema para muitos, encontrei no Hospital de Reabilitação Física 11 contentores cheios de material que se estragou. Entendi que para algumas pessoas gastar avultadas somas e estragar o produto adquirido não é problema. Contudo, tenho de aceitar o que os velhos dizem. Na minha língua materna há um ditado que diz: se você estiver na barriga de alguém, tem que estar quieto, não pode mexer-se. Este ditado continua válido. O aparelho de que lhe falo deveria ser montado no hospital oncológico, onde montaríamos também um aparelho de radioterapia, se a senhora jornalista quiser ajudar Angola pergunte quando este aparelho, que já custou avultadas somas, será montado. Como técnico, nunca politizei as coisas. A mim custa-me muito quando comparo Angola com Moçambique, um país pobre, sem grandes recursos, mas com um sistema de saúde muito melhor, a taxa de mortalidade infantil em Angola é das piores e Moçambique está na posição 63, numa escala de 194 países. Veja, Moçambique tem 600 médicos, Angola tem o dobro, mas o nosso sistema de saúde é pior. Como intelectual, isso me aquece a cabeça.
ANG – Como e quando tomou conhecimento da sua exoneração?

S.V. – Tomei (pausa) …como muitos tomaram. Mas isso não é o mais importante, estamos diante de um caso consumado.

ANG – Insisto: como tomou conhecimento da sua exoneração? É que temos registo de casos de governantes que apenas tomaram conhecimento do afastamento pela imprensa.

S.V. – Estou a dizer que é um caso consumado. Penso assim talvez porque fui médico cirurgião, quando o anestesista me dizia que o doente já faleceu, parava e entregava o corpo ao ajudante para que preparasse o cadáver. Acredito que todo o erro administrativo pode ser corrigido por quem de direito.

ANG- Há uma pergunta que não quer calar. Comenta-se muito, inclusive as mesmas observações foram feitas sobre a anterior ministra, que há uma titânica luta de poder dentro deste ministério, estando de um lado o ministro e do outro o vice. Isso ocorreu no seu caso?

S.V.- Isto está claro. Quando você for perguntar quem mandou suspender a montagem da ressonância magnética a sua dúvida estará esclarecida. Sempre digo a verdade. Digo hoje que eu tinha 30 porcento do poder no ministério e o vice-ministro 70, não sei se terei a oportunidade de voltar a dizer isso, mas é verdade. A prova é que veio uma ressonância magnética que custou muito dinheiro, mas que mandaram parar por questões políticas, é uma máquina que não é montada por técnicos angolanos, mas sim por estrangeiros, técnicos da energia nuclear, estes tinham um contrato de dois anos, renováveis até que tivéssemos técnicos angolanos capazes de realizar o mesmo trabalho. É um aparelho que só se constrói por encomenda, mas como eu tinha 30% do poder, mandaram parar. Para terminar as constatações, em Agosto mostramos ambulâncias que deveriam ir para todo o território nacional, a ideia era levar estas viaturas a todos os municípios. Não sei como esta iniciativa foi interpretada politicamente, mas a verdade é que até hoje estes meios estão na Angomédica. São ambulâncias novas que estão a apanhar sol e chuva. Quem quiser colocar estas viaturas a funcionar terá que gastar mais dinheiro. O que me dói é que o povo é levado num cangulo para ir ao hospital, mas as ambulâncias estão encostadas por convicções políticas.
ANG – Qual será o futuro político do senhor Sebastião Veloso?

S.V. – Para ir ao parlamento eu não decido, isso dependerá da opção do partido pelo qual fui eleito, estou inteiramente ao dispor, se for convidado a trabalhar numa clínica estarei disponível.

ANG – Sai rico deste ministério?

S.V. – Saio do ministério mais pobre. Quando vim para aqui deram-me um carro protocolar, esse carro é de função. Como estava muito envolvido na causa da saúde não pensei nestes pormenores. Se hoje os que mandam disserem que devo encostar o carro, terei de pedir boleia. Contudo, não vim aqui para ser servido, vim para servir.
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