sábado, 5 de janeiro de 2013

Só Cadeia Resolve


“No Brasil, pensamos que só a cadeia resolve”

A juíza aposentada Vera Regina Müller é uma das pioneiras no Brasil na defesa de penas alternativas. Apaixonou-se pelo tema no início da década de 1980, quando conheceu a realidade britânica: de cada cem penas aplicadas no Reino Unido, 80 são alternativas. Müller implantou penas alternativas no Rio Grande do Sul, sua terra natal, em 1985. Em 2000, faria o mesmo na Central Nacional de Penas e Medidas Alternativas (Cenapa) do Ministério da Justiça, que comandou no fim do governo de Fernando Henrique Cardoso

Com o julgamento do “mensalão”, mais do que nunca o debate sobre as penas alternativas volta à tona, mas o assunto guarda duas ironias: se o governo do PSDB foi o responsável por tê-las implementado no País, não deixa de ser, no mínimo, curioso que o partido agora defenda, com unhas e dentes, o encarceramento dos condenados. Por outro lado, o PT, que gostaria de ver José Dirceu, José Genoino e outros colegas de partido cumprir penas alternativas, em vez de presos, diminuiu a verba federal para o setor nos últimos anos.

A juíza Vera Regina Müller concedeu entrevista ao portal da revista Carta Capital, 02-01-2012. Foto: Sergio Amaral.

Eis a entrevista.

Desde que a senhora esteve no governo, evoluiu a questão das penas alternativas no Brasil?


Carecemos, hoje, de um sistema online para medir as aplicações no País. Os dados que chegam são muito atrasados. Até onde se contou, em 2009, o número de penas alternativas ultrapassou o número de encarcerados: são cerca de 540 mil encarcerados e mais de 640 mil aplicações de penas alternativas. E deve ser muito mais.

Não é irônico que o PSDB, que criou uma central de penas alternativas, defenda agora o encarceramento dos condenados no “mensalão”?

É irônico, mas tem outra conotação aí, política. No Brasil, achamos que a única coisa que resolve é a cadeia. Está aí o (José Luiz) Datena que passa a tarde na televisão a martelar, a preconizar o encarceramento. Quando comecei a fazer esse trabalho, verifiquei que 75% dos processos numa vara criminal eram de menor potencial ofensivo. Só 35% são delitos mais graves. Os demais não tiveram defensor público, são pobres, sem qualificação profissional, poderiam estar fora da cadeia. Os delitos mais graves são em muito menor número, mas a população não sabe disso.

Há quem defenda que crimes de colarinho-branco não sejam punidos com penas restritivas de liberdade, mas com multas e penas alternativas. A senhora concorda?

Depende do crime de colarinho-branco. A Justiça Federal tem juizado especial e trabalha com penas alternativas e o recolhimento é fantástico exatamente em função da aplicação de multas a crimes do colarinho-branco. Muitas instituições são beneficiadas com isso, dá para fazer muita coisa. O que eu fico impressionada é dizer que “não vai dar em nada, vai aplicar pena alternativa”. Pena alternativa, quando bem aplicada, tem a sua função de prevenção da criminalidade e de reprimenda. O que se procura? Fazer com que a pessoa se sinta tão constrita, responsabilizada, que não volte a delinquir.

Para aplicar a pena alternativa, a questão é apenas o réu não oferecer risco à sociedade?

Violência, grave ameaça ou risco à sociedade. A maior parte das tipificações do código penal é para delitos mais leves. Quando a pena é de até quatro anos, o juiz precisa aplicar a pena alternativa se o réu preencher as condições: se é primário, se não tem antecedentes, se o delito é proporcional, tem vários requisitos. Quando tem essas condições, tem de aplicar, não pode fugir.

Hoje quais são as penas alternativas possíveis?

Tem a prestação de serviços à comunidade, a limitação de fins de semana, a prestação pecuniária. Têm, também, aquelas que a Lei Maria da Penha trouxe, que é o agressor se manter a tantos metros de distância da vítima e ter de se apresentar à Justiça de tempos em tempos. Em minha opinião, o que funciona muito bem, quando bem aplicada, é a prestação de serviços à comunidade. A reincidência é menor.

Se as penas alternativas fossem mais bem aplicadas, as cadeias estariam mais vazias?

Num primeiro momento, se acreditava que poderia esvaziar, mas são muitos os fatores. Como o movimento de entrada é muito grande, não dá para dizer isso. O que precisa é mais investimento. Fui ao Ministério da Justiça e, quando vi os recursos aplicados, me apavorei: são os mesmos de 12 anos atrás. São só 3 milhões de reais previstos para o ano que vem.

Quer dizer que o PT agora defende penas alternativas, mas não investiu em sua aplicação?

Investiu, mas todo o dinheiro do Fundo Penitenciário Federal está sendo utilizado para o superávit primário. A arrecadação que a pena alternativa teria é muito maior do que estes 3 milhões que se têm agora para o orçamento do ano que vem. Está na mão do ministro tomar alguma atitude.
As penas alternativas caminharam mais rápido no governo FHC ou no governo Lula/Dilma?

No governo FHC foi dado o start. Depois, num período grande do mandato de Lula, o recurso chegou a 9, 10 milhões de reais, mas logo começou a reduzir. Então, acho que os dois governos estimularam. O que não pode é deixar morrer, precisa dar um salto. No nosso país entende-se que a expiação tem de ser na cadeia, e quanto pior a cadeia, melhor. Mas lidamos com seres humanos. Como é que essa pessoa vai sair e ter uma vida harmônica na sociedade se é maltratado lá dentro? A pena alternativa ajuda muito para que ele não ingresse na prisão. E quem está lá tem de ser bem tratado.

Outro dia o ministro José Eduardo Cardozo falou que se mataria se fosse preso no Brasil. O que a senhora achou?

Teve o lado bom e o lado ruim deste comentário. O lado bom é que ele foi absolutamente sincero, foi até elogiado pela coragem de dizer o que estava sentindo. O lado ruim é: puxa, então por que não faz alguma coisa? Hoje o que está se propondo para o ministro é a municipalização da execução penal, já que o delito acontece no município.

Existe na opinião pública uma vontade muito grande pelo encarceramento, não é?

Exato, coloca-se o encarceramento como uma forma de terceirizar a execução penal. “Eu vou deixar lá na cadeia, não quero nem ver”. Pretende-se jogar para baixo do tapete, como se o réu não fosse fruto da sociedade em que a pessoa vive. Quando eu era criança, tinha uma cadeia pública pertinho de onde a gente brincava, em São Leopoldo (RS). Não tinha muros fechados, eram de arame, e a criançada enxergava os presos. Nenhuma criança estranhava. Hoje, quando querem fazer uma cadeia em qualquer lugar é uma gritaria lascada, ninguém quer saber de prisão por perto. Talvez fosse preciso um trabalho de mídia importante para explicar o que são as penas alternativas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sim