terça-feira, 10 de maio de 2016

Racismo contra as Mulheres Negras

Ser negra vai além de ter uma cor

     
O despreparo para denúncias de racismo fica evidente quando há, por parte do agente da polícia militar, uma desqualificação da denúncia feita pela vítima em conjunto com um questionamento sobre sua negritude
“ Trabalho na empresa (...) terceirizada com o correio. Eu trabalho lá há 3 meses, trabalhando no correio Lagoinha na parte da tarde, e surgiu uma vaga no outro correio do Portinari para mim de manhã. Eu gostei porque poderia estudar na parte da tarde. Cheguei no meu trabalho para cumprir o meu horário e um senhor da minha empresa começou a falar: “Como que você, negrinha do cabelo fuá, pode roubar meu lugar?”. Eu disse: “Como assim?”. Ele falou que eu, “menina da cor suja, do cabelo ruim e maloqueira não podia estar trabalhando lá, em uma empresa federal” e disse que eu tinha que “arrumar meu cabelo de preta para ir trabalhar" e que iria "comprar dois piolhos para colocar no meu cabelo”. Eu cheguei em casa muito triste e falei que iria arrumar outro emprego. Minha mãe perguntou o que tinha acontecido, eu contei e ela disse que este homem nojento tinha que pagar porque ele era racista. Minha mãe falou que iria acabar com ele e tals, e depois fomos ao primeiro distrito. Cheguei na delegacia, fui abordada por um policial branco, ele perguntou o ocorrido, eu contei tudo a ele. Ele olhou para mim fazendo pouco caso e começou a rir. Ele falou: “Como pode ser racismo, sendo que a vitima é branca?”. Eu disse que ser negra vai além de ter uma cor. Ele saiu do lugar, fui chamada pelo escrivão. Ele, negro, me ouviu, foi super educado, e o policial que me abordou no início disse que era para colocar como “injúria racial”, o escrivão fez como ele disse. Saí de lá e liguei no DDM  (Delegacia de Direitos da Mulher) para marcar um horário para representar a queixa contra o autor, assim como o escrivão tinha me orientado.”  (Laura Grazielle, 18 anos)
O relato acima, a respeito de um caso de racismo ocorrido dia 3 de maio, mais uma vez aqui em Ribeirão Preto, serve para nos revelar o quanto que processos de discriminação (de raça, gênero e classe social) estão sendo naturalizados e banalizados até hoje. Com a diferença que atualmente as redes sociais e a atuação de mídias independentes aumentaram a quantidade destes casos relatados e, com este grau maior de informação a respeito destas violências, cada vez mais as pessoas tem tomado coragem para denunciar estas situações.
Além disso, da leitura do relato podemos extrair, pelo menos, mais dois conjuntos de discussões: 1, o colorismo; e 2, o despreparo de algumas instituições para acolher vítimas e suas respectivas denúncias.
Sobre o primeiro ponto há vários estudos que mostram que quanto mais traços fenotípicos negroídes uma pessoa tem, mais chances há de que ela sofra algum tipo de discriminação racial. Além disso, há também uma enorme pressão social para que pessoas “menos negras” não assumam suas origens ou se orgulhem de sua negritude. É bastante comum encontrar em certidões de nascimento pessoas negras descritas como “brancas”, pessoas de pele escura descrita como “pardas”. Há também os eufemismos racistas utilizados para descrever pessoas negras enquanto “morenas”, “mestiças”, “mulatas”, “cor de papelão molhado”, “escurinha” etc. Tudo isto para diminuir o orgulho, a autoestima, a sensação de pertencimento e unidade da população negra, que muitas vezes cai nestas armadilhas e se desgasta em discussões que nem são sempre produtivas.
É bastante comum encontrar em certidões de nascimento pessoas negras descritas como “brancas”, pessoas de pele escura descrita como “pardas”. Tudo isto para diminuir o orgulho, a autoestima, a sensação de pertencimento.
É evidente que as pessoas mais próximas ao ideal de brancura não passam por alguns processos que outras mais distantes passam, porém, ainda assim elas são negras. Afinal de contas, se posicionar como negra ou negro não é uma questão de “quem sofre mais” e sim uma tomada de posição política perante a uma sociedade racista e excludente.
O despreparo para denúncias de racismo fica evidente quando, de acordo com o relato, há por parte do agente da polícia militar uma desqualificação da denúncia feita pela vítima em conjunto com um questionamento de sua negritude. É como se o sistema dissesse “ei, você tem a chance de se passar como branca, vai desperdiçar isto?”. E cada vez mais a resposta da população tem sido de “sim, vou desperdiçar esse suposto privilégio, e em troca me aceitar e me amar como sou”.
Há 15 dias, meu primeiro texto aqui no Blog do Galeno tratou de um caso de violência policial que acabou com a vida de Luana, uma mulher negra, lésbica e moradora da periferia de Ribeirão Preto. Em solidariedade, os movimentos sociais da cidade se reuniram em um ato em frente ao 1º distrito policial, contando com mais de 150 manifestantes. Além disso, estão sendo tomadas as medidas jurídicas necessárias para uma correta investigação e julgamento deste crime. Nesta semana, acompanhei algumas notícias (como esta) sobre Douglas, um garoto de 12 anos que perdeu a visão de um dos olhos após uma ação da PM para repreender um fluxo na cidade de São Paulo. Até quando?
A quantidade de denúncias não é necessariamente a quantidade de casos, pois, além de sofrer a violência, é preciso que se enfrente muitas barreiras para conseguir efetivar uma denúncia.
Diversos estudos, pesquisas e ativistas apontam para a necessidade de, se não for para extinguir a polícia militar, que, ao menos, seja feito um processo de desmilitarização desta instituição que muitas vezes se apresenta como a principal representação de um Estado institucionalmente racista. Sendo inclusive a instituição responsável por acolher denúncias de racismo e violência contra a mulher. Isso faz com que muitas vezes a quantidade de denúncias não seja necessariamente a quantidade de casos, pois, além de sofrer a violência, é preciso que se enfrente muitas barreiras para conseguir efetivar uma denúncia. Junto com minha namorada, já passei por uma tentativa de denúncia de racismo que ela havia sofrido e como resultado quase acabei detido por desacato ao policial que estava nos atendendo.  Este tipo de abordagem não é um caso isolado, isto precisa mudar. Parafraseando a Frente 3 de Fevereiro, “quem policia a polícia?”
Outros artigos do colunista:
Por Luana, Dilma, eu e você

Daniel Ramos

Cientista social, mestre em antropologia e poeta, é um dos idealizadores e organizadores do Sarau Preto, membro do Coletivo Abayomi e professor de africanidades na Cooperativa Educacional Popular (CEP).

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