terça-feira, 4 de abril de 2017

Trabalho Escravo

Trabalho escravo: “Há fazendas com hospitais para o gado, mas o
trabalhador não tem nem água tratada”
por Talita Bedinelli

Há dez dias, a chamada lista suja do trabalho escravo, que revela o nome
de empregadores envolvidos em contratações análogas à escravidão, voltou
a ser publicada. Ela estava suspensa desde 2014, quando o então ministro
do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, acatou o pedido feito
pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que
conta com construtoras flagradas explorando trabalhadores expostas na
lista. A Abrainc argumentou que não havia a garantia do direito de
defesa das empregadoras. Seguiu-se um imbróglio jurídico e a edição de
uma nova portaria, mudando a forma como a lista é divulgada  – apenas
trabalhadores com todos os recursos administrativos esgotados apareceriam.

Mesmo com o entendimento do próprio Supremo de que as mudanças
apaziguavam as inquietações das construtoras, o Governo federal, já sob
a tutela de Michel Temer, recusava-se a publicá-la. Foi preciso que o
Ministério Público do Trabalho conseguisse uma liminar, obrigando que o
documento, elogiado pela Organização das Nações Unidas, voltasse a se
tornar público. Mas, ainda assim, não há garantia de que ela não se
tornará secreta, novamente, já que a liminar pode ser derrubada a
qualquer momento. O procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, conta
que está é apenas mais uma das dificuldades vividas pelo combate ao
trabalho escravo no Brasil. Responsável pela equipe que flagra as
denúncias, ele conta ao EL PAÍS os problemas enfrentados pela fiscalização.
Pergunta. Por que a lista existe e é importante que seja publicada?

Resposta. A chamada lista suja foi criada por meio de uma portaria para
evitar que essas empresas que exploram trabalhadores em condições
análogas à de escravo tivessem acesso a empréstimos públicos. A ideia
era que não faria sentido o próprio Estado financiar uma empresa que
estava submetendo seus cidadãos a uma condição análoga à de escravo.
Durante mais de dez anos houve a lista sem qualquer contestação. Até
que, em 2014, após operações onde foi constatada a existência de
trabalho escravo na construção civil, as construtoras criaram uma
associação, que contestou a portaria no Supremo Tribunal Federal. O
ministro Ricardo Lewandowski determinou, num plantão de final de ano, a
suspensão da lista acolhendo o argumento de que ela não oferecia o
direito do contraditório e de defesa. Tentamos derrubar a medida no
próprio Supremo. E, como ela não caiu, tentamos um acordo para que o
Governo reeditasse a portaria, corrigindo questões levantadas pelo
ministro. E assim foi feito.
P. E depois?

R. A portaria que está em vigor, que é de meados do ano passado, atendeu
às exigências do ministro. A ministra Carmen Lúcia, já presidente do
Supremo, entendeu que a ação das construtoras tinha perdido objeto. A
partir de então, começamos as tratativas com o Ministro do Trabalho, já
do Governo Michel Temer, e em razão de não haver uma definição sobre a
publicação da lista ajuizamos uma ação civil pública para que o
ministério efetivamente cumprisse a portaria, feita pelo próprio
Governo. Houve uma defesa por parte da União, contestando a portaria.
Hoje, há uma liminar determinando a publicação. Por isso a lista foi
publicada na semana passada.
P. Qual a garantia de que a lista não será tirada do ar novamente?

R. Tivemos uma reunião com o ministro [do Trabalho, Ronaldo Nogueira] na
terça-feira ele nos afirmou que enquanto ele for ministro a lista está
mantida. Independentemente do desfecho judicial, ele disse que vai
publicar a lista.
P. Mas se o próprio Governo está recorrendo, como ele pode assegurar isso?

R. Confesso que é um pouco estranho mesmo. Dentro do próprio Governo
esta questão não é tranquila. Tanto o Ministério da Justiça como o dos
Direitos Humanos, desde o início da ação civil pública, emitiram notas
técnicas no sentido de que a lista deveria ser publicada. Então, a
restrição se restringiu à AGU [Advocacia-Geral da União] e ao Ministério
do Trabalho. Os outros dois órgãos que assinaram a portaria são a favor
dela. O que estamos buscando, e conversamos com o ministro sobre isso, é
que seja feito um acordo judicial para que se formalize a posição dele.
P. Caso o Governo brasileiro reverta a decisão de se publicar a lista,
para onde recorrer?

R. Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos e para a OIT
[Organização Internacional do Trabalho]. Existe uma série de requisitos
para que o país seja denunciado em ambos os órgãos internacionais. Um
deles é que a gente vença essas etapas no judiciário local. Então,
estamos deixando para pensar nisso depois.
P. A lista que saiu agora não está completa, certo?

R. Alguns nomes foram publicados e depois retirados. Nós oficiamos o
Ministério do Trabalho para que o órgão explique os motivos dessa retirada.
P. Desde 2014, quando a lista deixou de ser publicada, apenas isso se
desobedeceu ou todo o resto deixou de ser cumprido, como a contratação
com o Governo?

R. A partir do momento que deixou de ser publicada a lista voltou tudo
ao que era antes.
P. E qual prejuízo pode ter havido neste período?

R. O prejuízo é o efeito pedagógico. Faltava a exposição pública dessas
empresas para que a própria sociedade possa ter a consciência de que
aquele produto foi produzido com mão de obra escrava. Por exemplo: eu
vou comprar um vestido para a minha mulher ou um terno para mim, se eu
sei que aquela loja já foi condenada por trabalho escravo eu não vou
comprar naquela loja. A gente precisa dessa exposição pública para que a
sociedade faça a opção. Se a gente pegar o nível de resgate de
trabalhadores vemos que a partir das condenações, junto com a publicação
da lista, houve uma queda significativa nos números de resgates de
trabalhadores em condição análoga à de escravo. Isso é resultado do
efeito pedagógico.
P. Falamos de trabalho escravo, no Brasil, em 2017, quando as convenções
assinadas pelo país são de décadas atrás. Por que isso ainda acontece? É
um problema de legislação?

R. Nossa legislação é uma das mais modernas do mundo. É uma legislação
reconhecidamente progressista no tema. O Brasil é referência na OIT e na
ONU sobre trabalho escravo. O que falta no país? Primeiro, uma
consciência política e humana com relação ao trabalho. Fomos um dos
últimos países do mundo a abolir a escravidão. E nós ainda temos uma
mentalidade escravagista, da propriedade. Até pouco mais de cem anos
atrás, o trabalho era visto como algo sujo, como algo que quem tinha que
fazer era o escravo. O trabalho no Brasil ainda não é visto como algo
nobre, tanto que o sonho do brasileiro é ganhar na loteria para parar de
trabalhar. É preciso introjetar na nossa cultura que o trabalhador é
fonte de riqueza. Se fala muito que quem gera riqueza nesse país é o
empresário. Mas, não. Quem gera é o investimento do empresário e o
trabalho do trabalhador. Não deveria existir essa dicotomia entre
capital e trabalho. Talvez isso explique a quantidade de problemas que
ainda temos em 2017 com relação ao trabalho escravo. Além disso, temos
um déficit de auditores fiscais do trabalho muito grande, o que também
dificulta as ações contra o trabalho escravo e outras fraudes. O
Ministério Público do Trabalho já entrou com uma ação civil pública
contra a União para que fossem realizados os concursos. Essa ação está
em curso ainda.
P. Como o flagrante ao trabalho escravo é feito no país?

R. A gente trabalha muito com denúncias. Especialmente de trabalhadores
que fogem das fazendas e relatam isso para entidades parceiras. Elas
comunicam para a gente, fazemos os grupos móveis e as operações. Pelo
tamanho do Brasil, o preço para o deslocamento é muito grande. No Sul do
Pará tem fazenda maior do que muitos municípios do Brasil. Até para
achar a entrada da fazenda, a sede, é uma novela. Para a gente acessar
uma fazenda às vezes nem com carro com tração nas quatro rodas, tem que
pegar barco, helicóptero, algo muito difícil, verdadeiras aventuras. Se
a gente não tiver esses informantes às vezes não consegue chegar.
Estamos procurando um trabalho mais efetivo com a polícia, com a polícia
rodoviária. Fazer um trabalho de inteligência para dar mais efetividade
para as ações.
P. Temos um Legislativo muito conservador. Tenta-se, inclusive, mudar as
regras do combate ao trabalho escravo. Há deputados que acusam a
fiscalização de punir, por exemplo, fazendas por não haver copos
plásticos para que o trabalhador beba água. Como vê isso?

R. Esse argumento eu já ouvi. É um absurdo, uma situação que não existe.
O que existe é o trabalhador que precisa pegar água no cocho onde o gado
bebe água. Isso eu já constatei. É trabalho degradante. Ou pegar água no
rio onde ficam os búfalos o dia inteiro, como eu também já vi na Ilha de
Marajó (Pará). O que se pretende no projeto que tramita no Senado
Federal é restringir o trabalho escravo a apenas o trabalho com
restrição de liberdade. Esse conceito é o que a gente tinha quando a Lei
Áurea foi editada. Se isso passar, vamos ter um atraso de uns 130 anos
na história. Eles querem tirar o conceito de jornada exaustiva e de
trabalho degradante da norma. Claro que jornada exaustiva não é a de 10,
12 horas. É a de 18, 20 horas por dia. Condição degradante é o
trabalhador ser obrigado a se alimentar com comida podre, a beber água
de rio, fazer as necessidades no meio do mato. É ele se machucar e ser
jogado no meio do mato. Já peguei um caso no Tocantins que o trabalhador
estava operando uma serra elétrica, que pegou um nó na madeira, pulou e
quase arrancou a perna dele. E o empregador falou: ‘isso não é problema
meu, se vira’. Achamos esse trabalhador se arrastando na estrada. Isso
não é o que se faz nem com um animal. Há fazendas de criação de gado que
têm até instalações hospitalares para o gado, mas o trabalhador não tem,
sequer, uma cama para dormir ou água tratada.
P. Preocupam as investidas do Legislativo em relação às leis
trabalhistas, como a recém-aprovada Lei da Terceirização?

R. É uma pauta nitidamente empresarial em que se busca a retirada de
direitos trabalhistas. Em que pese o discurso ser o da segurança
jurídica, o que a gente vê são propostas que trazem muito mais
insegurança. É uma pauta precarizante, em que os empresários buscam
diminuir os seus custos, retirando os direitos dos trabalhadores.
P. A terceirização pode eventualmente estimular o trabalho degradante?

R. Hoje 92% dos trabalhos em condições análogas à de escravo no Brasil
são oriundos da terceirização. Eles tiveram a terceirização como causa
principal. Isso ocorre muito nas fazendas, em que o fazendeiro contrata
o gato, que alicia os trabalhadores. Quando a gente aciona essas
empresas, elas dizem: quem contratou foi o gato, não fui eu. Ele
terceirizou a contratação. Da mesma forma com essas grandes marcas, que
fazem uma cadeia produtiva quase infinita para a produção das suas
roupas. Elas estão, na verdade, terceirizando. A terceirização hoje é
condição sine qua non para o trabalho escravo. A liberalização para a
terceirização impede a responsabilização da empresa que se aproveita
daquele trabalhador.

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