sábado, 24 de março de 2018

Caso Naiara uma Inocente Vitima da Violência



COMOÇÃO
Caso Naiara: sete anos de uma infância interrompida
Idas e vindas marcaram a curta trajetória de Naiara Soares Gomes, raptada, estuprada e morta em Caxias do Sul, onde tentava recomeçar a vida afetada pelo desamparo
24/03/2018 - 09h00minAtualizada em 24/03/2018 - 09h59min




ADRIANA IRIONCaxias do Sul





Corpo da criança foi enterrado na quinta-feira (22)Felipe Nyland / Agencia RBS


Naiara está em casa. Veste short cor de laranja e blusa cinza. O cabelo com tons de rosa está amarrado para cima. A quietude da boneca denuncia a ausência da menina serelepe que batizou o brinquedo com o próprio nome. Naiara Soares Gomes, sete anos, foi estuprada e morta em 9 de março, quando caminhava sozinha até a escola, em Caxias do Sul.
Boneca de cabelo rosa era a preferida da meninaRonaldo Bernardi / Agencia RBS


Se estivesse na humilde casa de quatro peças onde vivia havia três anos com uma tia, dois irmãos e primos, Naiara estaria arrastando de um lado a outro a boneca, seu brinquedo preferido, que ganhou de uma vizinha. Nas histórias infantis que criava, a menina parecia reproduzir uma experiência que conheceu desde o nascimento: andar para lá e para cá em busca de proteção.


Caçula de oito irmãos, Naiara nasceu em Vacaria, às 19h45min de 10 de agosto de 2010. Na época, já fazia um ano que sua família era atendida pelo conselho tutelar da cidade em razão de negligência por parte da mãe, que costumava sair e deixar os filhos aos cuidados de um tio idoso. As crianças ficavam na rua. No órgão público, a situação ganhou a identificação de o "Caso dos filhos da Naninha".


Fabiana Reis Soares, a Naninha, hoje com 36 anos, era conhecida pela extrema agressividade contra quem tentasse interferir na vida familiar. O problema, segundo parentes, seria resultado das drogas.

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— Ela era boa mãe, ainda é. Sempre dizia que queria trazer esses três filhos de volta. Agora, ela disse que vai largar essa pedra (crack). Se alguém procurar, acho que ela aceita se tratar. Nunca imaginou que ia passar por uma dor dessas — diz Helenita Juliana Soares, 41 anos, irmã de Naninha.


Na rede de proteção, não há registro de agressões da mãe contra os filhos, mas o abandono era gritante. A partir de 2012, após a morte do então marido e pai dos quatro filhos mais novos – inclusive de Naiara –, Naninha se afundou na droga e o conselho tutelar passou a ser mais requisitado.


A escola e a creche pediam ajuda. Em certa ocasião, o colégio informou que havia sido providenciado banho, roupas limpas e comida para as crianças, mas que a mãe se negara a receber uma cesta básica porque sabia que venderia para comprar droga. Naiara tinha dois anos. Segundo outro relato ao conselho, mesmo as crianças que não estavam mais na creche iam ao local atrás de alimento. Costumavam ficar aos cuidados de um irmão, que cozinhava quando havia algo para pôr nas panelas.


Na época, o conselho tutelar tentou colocar as crianças em família ampliada, ou seja, com parentes. Mas a medida não teve sucesso devido ao comportamento de Naninha, que promovia brigas para retomá-las. A situação chegou ao ápice em 2014. Os meninos e meninas seguiam sendo vistos na rua, malcuidados, com fome.


— Foi quando assumi o caso. Fizemos relatório sugerindo que as crianças fossem abrigadas e que Naninha passasse por tratamento, internação — lembra a assistente social e conselheira tutelar Maira Dal Ponte.


Em 19 de maio de 2014, os filhos de Naninha foram levados para o Abrigo Divina Providência. Maira lembra da dificuldade para enfrentar a mãe:


— Os menores, tivemos o cuidado de buscar um de cada vez na creche. Mas para os maiores, tivemos de ir na casa. Fomos com segurança, com equipes da Guarda Municipal, da Brigada Militar e da Polícia Civil. Fiquei por uns dias andando com acompanhamento da guarda, pois fui ameaçada.

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Dos oito irmãos, Naiara e mais seis foram para o Divina Providência. Outra menina, à época com 10 anos, ficou com a avó materna, que a criava desde o terceiro dia de vida, quando a mãe a abandonou no hospital.


A ida para o abrigo causou mobilização entre familiares. Três dias depois, as crianças foram redistribuídas nas casas de parentes. A avó materna, que já cuidava da menina de 10 anos, ficou com Naiara e mais três irmãos. Não por muito tempo. Trinta e oito dias depois, em junho de 2014, com permissão judicial, a avó devolveu três netos: Naiara, uma irmã e um irmão.


— Sou cardíaca, não tive condições — relembra Irma Maria de Lima Oliveira, 68 anos, mãe de Naninha, com quem vivem dois irmãos de Naiara, de 13 e 18 anos.


Conforme a rede de atendimento, a desistência da avó teve relação com tumultos causados pela filha. Pela segunda vez no Divina Providência, os três irmãos não foram mais procurados por familiares maternos. Por ordem judicial, o abrigo passou a receber a parte da pensão que cabia às crianças em razão da morte do pai.

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Ação de destituição de poder familiar em relação ao trio passou a tramitar na Justiça de Vacaria. Teria partido de parentes de Naninha sugestão pela busca de uma tia paterna em Caxias do Sul que poderia, quem sabe, ficar com os irmãos: Maria de Lourdes Gomes, 45 anos.


— Queriam me dar um só. Era para escolher. Sabia que iam estar os três esperando. Como ia ficar meu coração? Disse lá: vou levar os três, mas não garanto que vou criar. Vou tentar. Se forem umas crianças queridas, que a gente consiga se entender, crio. Se não, devolvo. Até sexta-feira (9 de março), quando aconteceu essa tragédia (o sumiço de Naiara), estava tudo bem — recordou a tia antes de o suspeito ser preso e a morte da menina, confirmada.


Feito contato com a tia, a Justiça de Vacaria pediu que técnicos do Judiciário de Caxias fizessem estudo social da família. Maria de Lourdes, mãe de cinco filhos, demonstrou empolgação. Declarou renda em torno de R$ 1 mil, como auxiliar de limpeza de um restaurante, além do reforço de R$ 960 do salário de uma filha. Pretendia até fazer um quarto para os sobrinhos.


Em Caxias, como um símbolo da chance de retomar a infância que merecia, Naiara ganhou a boneca de cabelos cor de rosa a qual emprestou o próprio nome. Começava nova fase na vida dos três irmãos.


Em 9 de março de 2015, exatos três anos antes do desaparecimento de Naiara, ela e dois irmãos foram desligados do abrigo em Vacaria para morar com familiares em Caxias do Sul.


A tia paterna ganhou a guarda. A adaptação foi natural. Naiara dividia com a irmã de 10 anos uma cama de solteiro ladeada por um roupeiro – que serve como divisória de um quarto maior, onde dormem outros familiares. É também ali, em um espaço onde a iluminação não alcança, que fica Naiara, a boneca de cabelos tom de rosa.


— Ela arrastava a boneca de um lado para outro, pelo pescoço, adorava. Acho que não tinha dado nome — comentou a tia, Maria de Lourdes Gomes, 45 anos, nos dias que antecederam a descoberta do crime.


O nome era Naiara, garante a irmã de 10 anos. Além da boneca, a caçula também gostava de quebra-cabeças e de dar aulas imaginárias, mas tinha o hábito de brincar sozinha, afastada até mesmo dos irmãos. Cantava muitas músicas, lembra uma prima de cinco anos. Do material escolar, restou na casa um livro do ano passado, herdado de outro aluno, mas com traços de Naiara. A menina gostava de estudar e evitava faltar ao colégio.


— Teve um dia esse ano que a gente não conseguiu levar e ela ficou brava — conta a tia.


Naiara era mesmo uma estudante presente. Em todo o 2017, só teve uma falta: havia pisado em um prego. Na pasta da aluna na Escola Municipal de Ensino Fundamental Renato João Cesa consta bilhete escrito pela tia para justificar a ausência.


— Naiara era afetuosa, comunicativa, tinha alguns problemas normais de aprendizagem. A tia comparecia quando era chamada, procurava sempre fazer o que era solicitado — diz Jussara Maria Polesello Ribeiro, coordenadora pedagógica da escola na qual Naiara deveria ter chegado na manhã de 9 de março.


Segundo Jussara, o colégio não tinha conhecimento de que a menina estivesse indo até lá sozinha. Depois do sumiço, o primo de 15 anos que estuda na mesma escola e era encarregado de levá-la admitiu que havia deixado a menina fazer o trajeto sem acompanhamento outras vezes.


Em agosto de 2017, os dois irmãos de Naiara, a pedido da tia, haviam sido transferidos para escola mais perto de casa, no Loteamento Monte Carmelo. Mas não havia vaga para a caçula, que cursava o 1º ano:


— As meninas lá da secretaria disseram que iam avisar quando tivesse vaga, então, não pedi de novo.


Desempregada há sete meses (tem lesão no joelho e aguarda por cirurgia), Maria de Lourdes recebe R$ 400 de pensão destinada às três crianças. Por conta da compra do material escolar em março, havia cancelado o transporte no primeiro mês de aulas. O gasto com a van, segundo ela, seria em torno de R$ 500. Mas pretendia retomar em abril.


— Já havia falado com o tio da van. Meu Deus, como a vida da gente pode mudar assim de uma hora para outra? — questionava Maria de Lourdes na manhã da quarta-feira, ainda comemorando o fato de uma benzedeira ter-lhe dito na noite anterior que Naiara estava viva e voltaria para casa.


Entre o material preparado para o ano escolar está uma mochila de princesas com rodinhas. Naiara não a estava usando ainda porque ficava muito pesada para puxar ao longo dos quatro quilômetros que caminhava diariamente para ir e voltar do colégio. Por enquanto, carregava mochila de pendurar nas costas, primeiro objeto localizado pela Polícia Civil nas proximidades de onde estava o corpo da menina, em um matagal no distrito de Ana Rech.

Dificuldade financeira e
falhas na rede de proteção


A família recebe apoio da assistência social de Caxias do Sul, mas tem direito a mais benefícios, ainda não disponibilizados por falta de comunicação entre órgãos ou burocracia. Em meados de agosto de 2017, quando ficou desempregada, Maria de Lourdes buscou ajuda no Centro de Referência de Assistência Social (Cras), ligado à Fundação de Assistência Social (FAS). Passou a receber duas cestas básicas por mês, além de R$ 346 de Bolsa Família.


Por estar em situação de vulnerabilidade financeira, a família pode ser colocada no Programa Inclusão Social, que prevê o recebimento de um salário mínimo (R$ 954) por mês pelo período de até seis meses. Mas a questão ainda estava em avaliação e o benefício só começará a ser pago em abril, conforme a FAS.


Há ainda possibilidade de concorrer a outro salário mínimo mensal por conta do programa municipal Guarda Subsidiada, que prioriza situações indicadas pelo Judiciário e preventivas ao abrigamento.

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Ou seja: pode ser dado a famílias que têm condições de proteger suas crianças, mas sofrem com dificuldades financeiras. Enquanto está no Inclusão Social, a família não pode acumular este benefício, mas talvez pudesse tê-lo recebido antes, há mais tempo.


— O desacolhimento das crianças (saída do abrigo) foi feito por Vacaria. Quando é pela nossa comarca, o juiz pede inclusão no programa (Guarda Subsidiada).


Infelizmente, há dificuldade também de comunicação entre os poderes. Como a designação da guarda foi feita por Vacaria, e não foi acionado Caxias oficialmente, então, não tínhamos conhecimento do recebimento das crianças pela tia. Não nos foi comunicado nada. Mas seria importante que houvesse diálogo entre as secretarias. Temos inúmeras famílias em dificuldades e, se nossa rede fosse mais articulada, inclusive a intermunicipal, talvez evitaria situações como essa. Precisamos avançar — admitiu Heloísa Teles, diretora de proteção social básica da FAS.


O Conselho Tutelar de Caxias do Sul informou que não tinha contato com a família desde 2016. Não sabia da troca de escola de dois irmãos de Naiara, nem que ela não havia conseguido vaga mais perto de casa ou que ia para o colégio a pé. Também desconhecia que Maria de Lourdes estava desempregada.


— A tia sempre fez os movimentos solicitados por nós. Por ter atendimento, não precisa estar a todo momento aqui relatando. Com o desaparecimento, fomos ver onde falhou, o que aconteceu. Ninguém fez denúncia de que a criança estava indo sozinha para a escola. O conselho tutelar não é assistência social, que vai fazer visita. A gente faz verificação in loco, se chegar situação para nós. Mas não somos um órgão fiscalizador de criança na rua, isso não existe. Quem vai monitorar se filho está na rua, se está indo para escola ou não, são os responsáveis. Se alguém da comunidade ou família fizer comunicação de que as coisas não estão a contento, vamos atuar. Não temos bolinha de cristal para saber onde está o problema — ponderou Rosane Formolo, conselheira tutelar de referência da família em Caxias.

A solidão no
trajeto para a escola


Segundo a profissional, a família está recebendo suporte psicológico e deve passar por novo estudo social. Rosane destacou ainda que, só em 2017, o conselho tutelar encaminhou ao Ministério Público 202 pedidos de transferências de escolas por conta de questões como distância ou outras dificuldades.


— Proteção é responsabilidade de todos. Ninguém denunciou que ela ia a pé — argumentou Marjorie Sasset, coordenadora do Conselho Tutelar da Macrorregião Sul de Caxias.


Em mais de uma ocasião durante a investigação, o delegado Caio Márcio Fernandes, titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, (DPCA) chamou a atenção para o fato de uma criança tão pequena andar sozinha na rua. Descuido que fez de Naiara alvo fácil para o homem que a atacou.


Preso, ele admitiu à polícia que já havia agido e de forma muito semelhante, em outubro do ano passado, quando estuprou uma estudante de nove anos, abordada, igualmente, nas proximidades de um colégio. O caso não havia sido solucionado até o sumiço e a morte de Naiara, nem foi usado, à época, como alerta à comunidade escolar. A Secretaria Municipal de Educação afirmou na sexta-feira que jamais teve conhecimento do estupro de 2017.


— Foi um caso que não teve a repercussão de agora. O da Naiara foi diferente por causa do sumiço — ponderou o delegado regional de Caxias do Sul, Paulo Roberto Rosa da Silva.


O primo que deixou Naiara seguir sozinha enquanto levava a namorada a outro colégio está abalado. Até quarta-feira, não tinha voltado à escola. A tia, que acolheu os três sobrinhos buscando proporcionar a eles boas condições de vida, também sente culpa:


— Fiz errado de ter confiado no meu neto e não ter eu levado ela. Ou outra pessoa mais velha. Me sinto culpada sim.


Quando as noites chegam, a dor aumenta na casa situada na Rua Vesúvio, Loteamento Monte Carmelo. Era o horário em que Naiara ficava em volta de Maria de Lourdes e perguntava:


— Tia, você me ama?


Os três irmãos sabiam que ainda têm mãe. Mas não falavam dela e só a tinham visto uma vez depois da mudança. A caçula era a que menos tinha contato. Na quarta-feira, quando o corpo de Naiara foi encontrado, Naninha e outros familiares viajaram para Caxias. Queriam que a menina, depois de velada, fosse enterrada em Vacaria. Mas a família paterna não permitiu.


— Não achei justo. Queria ela perto de mim — admitiu Maria de Lourdes.


Naiara, que tão cedo conheceu a experiência de andar para lá e para cá, em casas de parentes, nas ruas, em abrigo, ficou em Caxias do Sul, no Cemitério Público Municipal, onde foi sepultada na tarde da quinta-feira. Na casa da Rua Vesúvio, ficou a Naiara boneca, como herança precoce para a irmã e as primas da menina, estuprada e assassinada aos sete anos.
Fonte: Zero Hora

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